Artigo | “Lute como uma Bárbara!”, por Luiz Carlos Diógenes

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“Bárbara abalou, com sua ação política multifacetada, a sólida estrutura do machismo, que perpassa os séculos”, aponta em artigo o coordenador regional adjunto do Sintaf no Cariri, Luiz Carlos Diógenes

Para além das intempéries que turvam a memória histórica, os rastos da heroína Bárbara Pereira de Alencar ainda resistem, entre céu e terra, na arena de luta em que pisou. Seus restos, simbólicos, marcos indicadores de espírito público, à frente de seu tempo, a concentrar todo o peso da vida que valeu a luta e da luta que eterniza a vida, foram resgatados para orgulho nacional e pedagogia de valores patrióticos.

Seus rastos de tantas lutas revolucionárias conduziram-na, finalmente, em 2014, ao Panteão de heróis e heroínas nacionais. As pegadas que ficaram no chão do Cariri oriental, no entanto, ainda levantam redemoinhos, senão para a luta política, mas para o protagonismo feminista da luta contra a submissão ao patriarcado. Conquistas emancipatórias da mulher, em uma sociedade estruturalmente machista e autoritária, requer desfazimento de muitos nós por hábeis mãos políticas, orientadas pela compreensão e consciência de novos paradigmas éticos, socioculturais e científicos. Bárbara abalou, com sua ação política multifacetada, a sólida estrutura do machismo, que perpassa os séculos. Continua estrela polar para o movimento feminista do século XXI.

Comunidades envoltas na poeira dos passos corajosos de Bárbara, teatro das lutas passadas, cobram, hoje, interpretações histórico-científicas, sobre o que ficou em seu espírito comunitário do espírito singular da heroína. Não só restaram rastos, restos ainda restam. No imaginário coletivo da Comunidade de Monte Castelo ficaram além dos rastos, os restos corpóreo-espirituais de Bárbara, caindo em poeira quântica, germinando na consciência social o conceito de cidadania interdependente entre gênero, raça e classe. Uma nostalgia revolucionária, entre o sono e o sonho, aquece o torpor de um lugar perdido na caatinga, acendendo a chama do poder feminino, consciente do seu destino de autonomia, a ser tracejado por suas próprias mãos criativas.

Os rastos da heroína são rastos simbólicos, voláteis, de uma época passada, mas que, em época presente, podem ser seguidos e atualizados por outras heroínas, anônimas, partes conscientes de um só corpo comunitário. Entendidos e inteirados, imprimem rastos concretos, assentados no chão, mais visíveis e mais avolumados, apontando para uma seara, futura, de frutos mais generosos e com colheitas menos sofridas. As sementes das lutas passadas, lembradas e cuidadas nas fainas diárias, florescem em gerações futuras, alimentando-as com frutos de emancipação madura e consolidada. O pacto intergeracional, feminista, assim melhor se cumpre, e mais sustentavelmente honra seu ciclo político, em rede dinâmica de nós interdependentes. O futuro antecipa-se na luta de hoje, observando o passado!

Bárbara Pereira de Alencar não nasceu heroína. Forjou-se heroína nacional pela sua atuação política e conduta assertiva, na fornalha insurrecional da quadra independentista brasileira, no início do século XIX. Ergueu, de modo precursor, bandeiras republicanas, instrumentalizando seu ativismo feminista no processo de desenvolvimento político, econômico e cultural do Nordeste brasileiro.

Porém, uma heroína completa, não é só da Pátria, mas, com sua luz, brilha à Humanidade. Na condição de mulher altiva, atuou em frentes e dimensões diversas da emancipação feminina. Deixou rastos e restos em outras searas. Interferiu com sua práxis, na moral, na cultura e na história do Cariri cearense, denunciando, para a Humanidade, quando não a

força, a astúcia ideológica de um patriarcado de raízes eurocêntricas, em resiliência dissimulada. Os rastos e restos desta heroína, multifacetada, atualizam-se, em amplitude coletiva, no cotidiano de uma comunidade sertaneja feminista. Ainda invisibilizada por sonâmbulos que vagam na rede ecossistêmica de nós androcêntricos e patriarcais. Comunidade aguerrida, com espírito crítico de autonomia, experienciada na práxis de mulheres dirigentes, a servir de modelo paradigmático para uma era ecológica de sustentabilidade forte prometida pelos homens para o século XXI.

Práxis feminista, de matriz ”barbariana”, exige consciência de rupturas estruturais, materiais e ideológicas, culturalmente sedimentadas e naturalizadas no imaginário coletivo. Jamais seria luta de uma só Bárbara, nem só de um dia, o 8 de março, mas é luta sem fim, de muitas Bárbaras unidas todos os dias. Talvez, por isso, a Bárbara coletiva, plural, manifesta-se, exitosamente, no movimento feminista que efetiva a democracia participativa montecastelense. O espírito de Bárbara materializa-se na prática do protagonismo feministas das mulheres de Monte Castelo. Como se deu?

Bárbara em cortejo fúnebre, acolhida no íntimo de uma rede de algodão, entre a Fazenda Touro, no Piauí, e a igreja do Itaguá, no Ceará, deixou uma energia buliçosa, feita de rastos e restos, na Comunidade do Monte Castelo, distrito de Campos Sales, no Cariri orienta cearense, a meio caminho para o descanso derradeiro. O espírito grande que não morre num corpo foi espargindo sementes de energia nos campos por onde passou.

Nas pegadas últimas de Bárbara, quando seu corpo voltava ao útero da Mãe Terra, na passagem por Monte Castelo, germinaram dimensões revolucionárias da heroína, que foram regadas pelas mulheres desta comunidade, e hoje segue seus passos de emancipação feminina. Os direitos sociais, políticos, econômicos e culturais estão incrustados tanto no chão como na consciência comunitária. Suas bandeiras são desfraldadas pelo corpo feminino dirigente. Compreender tal fenômeno exige mais do que uma racionalidade iluminista, academicista, eivada de preconceitos tão afeitos ao patriarcado da sociedade milenar ocidental. Exige sobretudo, percepção aguda e multidimensional de um feminismo complexo, que enxerga a árvore da civilização em todos seus ciclos, das raízes às florescências.

Se para o movimento feminista muito pode se aproveitar, no 8 de março, da divisa ”Lute com uma Bárbara!”, quando não cooptado pelas linhas ideológicas, sinuosas e sagazes, do patriarcado, para a consciência cidadã feminina comunitária, para o empoderamento das mulheres dirigentes das políticas de desenvolvimento comunitário, convém o lema: ”Lute como uma Monte Castelo!”, a servir de exemplo e nortear, coletivamente, a luta pelo fim do patriarcado e esfacelamento de uma sociedade machista.

Luiz Carlos Diógenes é Doutor em Cidadania Ecológica do Estado Socioambiental e coordenador regional adjunto do Sintaf no Cariri

Fonte: Blog do Eliomar de Lima

1 COMENTÁRIO

  1. Parabéns meu caro Luiz Carlos, você sempre traz temas importantes! Falar de Bárbara, sua história, nos faz refletir sobre seu legado de luta e de coragem, que ainda hj é exemplo pra todas as mulheres.

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