OPINIÃO | Reforma tributária do governo merece melhorias no texto

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Para atingir seus objetivos, o PL 3.887/2020 da CBS deve ser ajustado pelo Poder Legislativo

A tributação sobre o consumo no Brasil é complexa, descoordenada, incentiva a guerra fiscal ao tributar na origem, onera exportações e investimentos em razão da incidência cumulativa e do acúmulo de créditos, comprometendo a neutralidade do sistema, a produtividade e competitividade do país e a própria arrecadação, evidenciando o esgotamento do modelo atual e a necessidade de uma reforma estrutural para simplificação e adequação ao modelo IVA, forma eficiente e mais utilizada ao redor do mundo para tributar bens e serviços[1].

O momento atual de crise econômica generalizada no país, agravada nos últimos meses pela emergência sanitária da pandemia, torna ainda mais urgente esta reformulação.

Diante deste cenário, o Ministério da Economia apresentou o Projeto de Lei 3.887/2020 (PL 3.887/2020), que institui a Contribuição sobre Bens e Serviços (CBS), em substituição às atuais Contribuições do PIS e da Cofins, pretendendo aproximar a nova cobrança de um modelo IVA, sobre uma base ampla de bens e serviços, com crédito integral e consequente redução de obrigações acessórias e custos de compliance.

Além das críticas mais amplas quanto às escolhas do Governo que, após se omitir do debate por mais de um ano e meio, optou em fatiar a reforma em 4 etapas, excluindo estados e municípios desta primeira fase, bem como sugerindo aumento de alíquota sem os benefícios de uma reforma estrutural ampla[2], no último dia 03 de agosto de 2020, a Ordem dos Advogados do Brasil, com o intuito de colaborar no debate a ser realizado no Congresso Nacional, elaborou uma proposta de emenda ao PL 3.887/2020, no qual endereça seis pontos para aperfeiçoamento:

(i) a necessidade de um ajuste redacional para efetivar a adoção do crédito financeiro;

(ii) o aumento escalonado da alíquota de CBS devida pelos profissionais liberais de profissão regulamentada;

(iii) a possibilidade de excluir as perdas com inadimplência da base de cálculo do imposto;

(iv) o repasse compulsório no preço aos contratos vigentes;

(v) a adoção de um prazo para o ressarcimento em espécie do crédito eventualmente acumulado e; por fim,

(vi) a extensão da isenção para as entidades previstas no art. 13 da Medida Provisória 2.158-35/2001, que atuam em prol do interesse público e não têm finalidade lucrativa[3].

Com o mesmo intuito, a seguir apresentamos 10 sugestões, não exaustivas, buscando reiterar as contribuições da OAB e acrescentar outros pontos para melhorias do PL 3.887/2020, em prol do objetivo almejado por todos: simplificação tributária, garantia de não cumulatividade plena, diminuição da litigiosidade e consequente segurança jurídica para melhoria do ambiente de negócios.

I. Ônus econômico da CBS deve ser expressamente atribuído ao adquirente
O item 7 da exposição de motivos do PL 3.887/2020 ressalta o objetivo de alinhamento da CBS a um tributo sobre valor adicionado de base ampla, com não cumulatividade plena, garantindo neutralidade da tributação na organização da atividade econômica.

De fato, a neutralidade é um princípio basilar da tributação moderna sobre o consumo e busca garantir que a cadeia produtiva não seja onerada pela tributação indireta, cujo ônus econômico deve recair exclusivamente sobre o consumidor final.

A premissa do repasse desse custo para o adquirente (assim entendido, o consumidor do bem ou serviço) parece teoricamente simples, mas a prática contratual e regulatória[4], bem como o histórico brasileiro de dificuldade de repasse para a próxima etapa da cadeia do ônus referente aos tributos indiretos, revelam o oposto.

Cite-se, a este exemplo, a experiência da implementação do sistema não cumulativo do PIS e da Cofins, e a dificuldade enfrentada na renegociação dos contratos empresariais para formação do preço do bem ou serviço ofertado diante da nova sistemática. A própria Lei 10.833/2004 excepcionou da nova sistemática os contratos vigentes, conforme regulamentado pela Instrução Normativa 468/2004, e não foi suficiente para dirimir todos os conflitos causados.

Neste sentido, para que a CBS realize o ideal de neutralidade, é necessário que fique claro que o novo tributo  não integrará o preço, devendo ser obrigatoriamente acrescido ao valor da operação e destacada no documento fiscal. Ainda, o projeto deverá garantir o direito à  revisão dos contratos vigentes, bem como adequação das regras regulatórias e mesmo legais, conforme o caso.

II. Vencimento da CBS deve estar em compasso com a data de vencimento da fatura
Ainda sob a ótica da neutralidade, considerando que o ônus econômico da CBS deve ser inteiramente arcado pelo adquirente, nada mais lógico e justo do que fixar o vencimento do imposto na data do vencimento da respectiva fatura. Do contrário, o alienante do bem ou serviço funcionará como um antecipador de recebíveis – atuando como uma espécie de “factoring gratuita” do Governo – e esse descasamento de caixa poderá lhe gerar custos substanciais, o que prejudicaria a neutralidade do modelo.

A tecnologia da informação já permite que o recolhimento do imposto esteja alinhado ao pagamento da fatura, através da integração do documento fiscal e da contabilidade da empresa ao sistema bancário[5], contribuindo também para diminuição da sonegação.

III. Reconhecimento do crédito da CBS recolhida na hipótese de inadimplência da fatura
Caso ocorra o recolhimento da CBS sem o respectivo pagamento da fatura pelo adquirente, o contribuinte deverá comunicar o ocorrido ao Fisco – que poderá tomar as providências perante o adquirente inadimplente, efetuando a glosa do respectivo crédito eventualmente aproveitado – e estará automaticamente autorizado a reconhecer o respectivo crédito da CBS não adimplida pelo adquirente, conforme critérios temporais  objetivos a serem estabelecidos.

Neste sentido, a adoção dos critérios utilizados pela legislação do IRPJ na Dedução das Perdas no Recebimento de Créditos, conforme art. 9º, §1º, I e II da Lei 9.4360/1996 pode, por exemplo, ser adaptada à CBS, com alguma simplificação. Caso ocorra o pagamento após o reconhecimento do crédito, o contribuinte deverá, naturalmente, proceder seu respectivo estorno, recolhendo o tributo devido.

V. Exclusão expressa da receita de terceiros da base de cálculo da CBS
Embora o conceito de receita bruta já afaste automaticamente a cobrança da CBS sobre outras receitas que não representem remuneração do serviço efetivamente prestado ou pagamento do bem comercializado (mero ingresso), é necessário que as “receitas de terceiros”, assim entendidas as receitas que apenas transitam temporariamente no caixa da empresa intermediadora, sejam expressamente excluídas da base e cálculo da CBS, evitando futuras discussões para as administradoras de cartão, planos de saúde, agências de viagem e de publicidade, dentre tantas outras que enfrentam inúmeras batalhas judiciais e arcam com os custos da alta litigiosidade em torno deste assunto.

VI. Prazo fixo para o ressarcimento de créditos acumulados e imediato ressarcimento aos exportadores
O art. 14 do PL 3.887/2020 prevê que ao final do trimestre calendário o saldo de créditos existente poderá ser (i) utilizado para compensação com débitos próprios, vencidos ou vincendos, relativos a outros tributos federais, ou (ii) objeto de solicitação de ressarcimento.

Para garantia do contribuinte é necessário acrescentar que a restituição deverá ser efetuada em até 60 dias, a contar do protocolo da solicitação de ressarcimento. Caso o crédito não seja disponibilizado em conta bancária informada pelo contribuinte, dentro deste prazo, estará sujeito à taxa referencial do Sistema Especial de Liquidação e Custódia (Selic), cujo termo inicial de correção será o primeiro dia do mês subsequente àquele em que o crédito foi apropriado em sua apuração.

Ainda, para garantia do contribuinte exportador, é necessário que se estabeleça um prazo mais curto de devolução dos créditos acumulados em razão da exportação: a solicitação de ressarcimento deve estar disponível imediatamente após o crédito ser apropriado, devendo ser devolvido em até 30 dias do pedido, sob pena da incidência de Selic, nos mesmos moldes do quanto acima sugerido.

VII. Autorização para transferência de crédito
O art. 16 do PL 3.887/2020 veda a transferência, a qualquer título, de créditos da CBS. No entanto, tendo em vista o histórico de não ressarcimento e não devolução dos créditos acumulados, sugerimos a modificação deste artigo para permitir a livre transferência à terceiros dos créditos acumulados após os prazos sugeridos no item VI acima.

VIII. Instituição de um limiar para a CBS
Os IVAs costumam instituir um limiar (“umbral”) estabelecendo um limite para indicar quais empresas estão obrigadas a se registrar como contribuintes do imposto e quais estão dispensadas de tal registro, sendo-lhes opcional.

O limiar busca evitar custos de compliance para pequenas empresas, que podem ser equiparadas ao consumidor final, deixando que a administração tributária concentre seu esforço no controle de contribuintes mais expressivos que são responsáveis pela maior parte da arrecadação do imposto.

Embora a manutenção do Simples Nacional resolva este problema para as micros e pequenas empresas, a ausência de um limiar poderá transformar uma pessoa física de faturamento irrelevante em contribuinte da CBS, nos termos do art. 3º do PL 3.887/2020, que remete à legislação do Imposto sobre a Renda das Pessoas Jurídicas (IRPJ)[6].

Neste sentido, é necessário que se institua um liminar da CBS, a fim de preservar estes pequenos empreendedores e excluí-los da obrigatoriedade de recolhimento do tributo e custos de compliance envolvidos.

IX. Apresentação dos cálculos das projeções de arrecadação e necessário ajuste da alíquota
Nos estudos econômicos da PEC 45, o Centro de Cidadania Fiscal (CCiF) concluiu que uma alíquota de 9% seria suficiente para substituir a arrecadação atual do PIS, da Cofins e do IPI, mediante a adoção de um IBS uniforme, sem exceções. É certo que a manutenção de isenções e tributações diferenciadas como prevê o PL 3.887/2020 altera essa projeção, mas não está claro qual foi o critério de cálculo do Governo.

Neste sentido, é relevante que se apresente os cálculos de projeção de arrecadação da CBS a fim de que fique claro o critério utilizado para estabelecer a alíquota de 12%, permitindo transparência no debate, inclusive para ciência do custo global que determinadas isenções têm sobre a arrecadação do tributo.

 X. Período de transição da alíquota para as empresas do lucro presumido
Embora conceda crédito integral sobre todas as aquisições tributadas, o PL 3.887/2020 extingue os regimes cumulativo e não cumulativo do PIS e da Cofins para substituição por uma alíquota única de 12% da CBS[7]. Observa-se que esta mudança causará um impacto maior para as empresas optantes do lucro presumido, sujeitas ao regime cumulativo cujas atuais alíquotas de PIS e Cofins somam 3,65%.

Neste sentido, ainda que se aprove uma alíquota inferior a 12%, é extremamente necessário que se institua um período de transição para essas empresas, a fim de absorver os impactos negativos deste aumento. A este exemplo, as PECs 110/2019 e 45/2019 preveem um período de transição para o novo regime do IBS de 5 e 10 anos, respectivamente. Para a CBS, sugerimos um período de transição mínimo 3 anos, especialmente para as empresas do lucro presumido.

Conclusões
Melhor que evoluir no PL 3.887/2020 seria voltarmos para a discussão de uma reforma tributária ampla, que inclua os demais entes federados, resolvendo o problema da complexidade do sistema tributário como um todo. Não parece haver justificativa razoável para o fatiamento da reforma, salvo uma preocupação egoísta do Governo Federal em tratar apenas da sua arrecadação.

Posto isso, ainda que se opte por debater a CBS, as sugestões acima buscam contribuir para o aprimoramento do texto, a fim de garantir o ideal de neutralidade e não cumulatividade plena, evitando que as empresas ao longo da cadeia sejam oneradas pelo novo tributo , bem como a simplificação almejada, sem aumento de carga tributária global, com a diminuição da litigiosidade e consequente segurança jurídica e previsibilidade para melhoria do ambiente de negócios.

LUIZ GUSTAVO A. S. BICHARA – Advogado, sócio de Bichara Advogados e Procurador Tributário do Conselho Federal da OAB.
LINA SANTIN – Advogada, sócia de Eurico Santi Advogados, Coordenadora Executiva do Nucleo de Estudos Fiscais (NEF/FGV), Diretora do MDA, Membra da Comissão de Direito Tributário do IASP, Membra Consultora da Comissão Especial de Direito Tributário do CF/OAB e Relatora da Sexta Turma Disciplinar do Tribunal de Ética e Disciplina (TED) da OAB/SP.

Fonte: JOTA

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