Semana passada o STF finalmente decidiu a tormentosa questão que ficou conhecida no meio jurídico tributário como a tese do século, sobre a utilização do ICMS na base de cálculo do PIS e da Cofins.
Na verdade, o julgamento de mérito já havia sido definido em 15 de março de 2017, porém o fisco federal havia interposto embargos de declaração visando obter a modulação dos efeitos da decisão e para definir exatamente qual ICMS deveria ser retirado da base de cálculo, se aquele constante das notas fiscais (o destacado) ou o que havia sido efetivamente pago. Como o acórdão ainda não foi exarado, uso nesta análise apenas o voto da Ministra Relatora Carmén Lúcia, as imagens do julgamento realizado online e as anotações de especialistas — registro, portanto, ser imprescindível a análise do acórdão quando foi publicado.
Para tentar esclarecer o leitor menos afeito ao tema, usarei um exemplo buscando imprimir alguma didática nesta matéria — o que afasta precisões matemáticas, afinal, este é um texto jurídico, e não a análise de um caso concreto. Portanto, imaginemos um comerciante que venda uma mercadoria por R$ 100 e que, embutido em seu preço, haja R$ 10 de ICMS (R$ 90 + R$ 10 = R$ 100). A questão em julgamento era: os tributos federais PIS e Cofins, devem incidir sobre R$ 100 ou sobre R$ 90? Pois bem, o STF decidiu que era sobre os R$ 90 embora o fisco federal pretendesse que incidisse sobre os R$ 100. Com isso, em 2017, o STF afastou o ICMS da base de cálculo do PIS e da Cofins. Simples assim.
Portanto, esse debate nada tem a ver com os fiscos estaduais, embora tenha a ver com ICMS, porém este tributo estadual apenas era indevidamente utilizado como base de cálculo inflada para a incidência dos tributos federais.
O que foi decidido pelo STF?
Primeiro, deve-se registrar uma espécie de silêncio eloquente, isto é, corretamente nada foi dito sobre os processos que já transitaram em julgado, o que aponta para a prevalência do que neles tiver sido decidido, reconhecendo a coisa julgada em seus exatos termos.
Segundo, foi decidido que o ICMS a ser expurgado seria aquele constante das notas fiscais, o destacado, e não o efetivamente recolhido. Acertou o STF, pois a relação com os fiscos estaduais nada tem a ver com o debate que estava em curso, e, além disso, o PIS e a Cofins estavam sendo usados como base de cálculo a partir das notas fiscais emitidas, e nelas estavam expressamente mencionados. O argumento utilizado pelo fisco federal era apenas uma cortina de fumaça, um despiste, ao qual o STF felizmente não aderiu. Para quem quiser mais detalhes sobre essa metodologia, clique aqui.
Terceiro, uma vez decidido que o ICMS destacado não deve ser utilizado na base de cálculo do PIS e da Cofins, todos os contribuintes que ingressaram em juízo passam a ter o direito de utilizar essa base de cálculo esvaziada. Ou seja, nas vendas quotidianas, ao se calcular esses tributos federais, não se deve usar o tributo estadual em sua base de cálculo. Uma questão em aberto são os efeitos dessa decisão para aqueles contribuintes que não ingressaram em juízo. Não há dúvida que os efeitos da repercussão geral aplicada a esta decisão (Tema 69) vincula todo o Poder Judiciário, porém, e quem ainda não ingressou em juízo? Será que todos os contribuintes devem propor ações? Os efeitos concorrenciais dessa decisão serão enormes, se não advier alguma norma regulando a matéria. Na dúvida, sugiro aos contribuintes retardatários que ingressem em juízo imediatamente.
Quarto, sobre a modulação. Aqui o STF agiu mal. Não deveria ter havido nenhuma modulação. Os contribuintes deveriam receber a devolução de tudo que pagaram a maior durante todos esses anos de cobrança inconstitucional, até mesmo porque o fisco federal sabia dos impactos dessa tese há décadas, e nada fez. Quem quiser mais detalhes sobre esse debate, sugiro ler aqui e aqui. Contra a modulação votaram corretamente os Ministros Rosa Weber, Edson Fachin e Marco Aurélio, mas foram vencidos.
Quinto, decidido então, por maioria, que deveriam ser modulados os efeitos da decisão, como se ela operacionaliza? Ficou estabelecido como parâmetro a data de 15 de março de 2017, quando ocorreu o julgamento de mérito. Isso diz respeito apenas à devolução do que foi pago a maior durante esses anos.
Os contribuintes que ingressaram com ações antes dessa data devem receber a devolução do que foi pago a maior considerando uma retroação de cinco anos contados da data do ingresso da ação. Assim, quem tenha ingressado com a ação em 2011, receberá a devolução referente aos cinco anos anteriores.
Os contribuintes que tiverem ingressado com ações após 15 de março de 2017 só receberão a devolução considerando essa data como limite. Ou seja, quem propôs a ação em 2020 terá a compensação do que pagou a maior limitada até 2017.
Em apertada síntese, foram esses os efeitos da decisão proferida pelo STF.
O que deve ser feito a partir de então?
Os contribuintes que têm ações em trâmite devem (1) imediatamente deixar de pagar o PIS e a Cofins sobre essa base de cálculo inflada, se é que já não o fizeram, e (2) usar o sistema informatizado da Receita Federal, conhecido no jargão como Per/Dcomp para se creditar do que pagou a maior, conforme as normas regulamentares desse órgão.
Os contribuintes que ainda não ingressaram em juízo em busca de seus direitos, que o façam imediatamente, buscando os dois efeitos: (1) deixar de pagar nas suas transações quotidianas o Pis e a Cofins tendo o ICMS em sua base de cálculo, e (2) receber o que pagou a maior, limitada a retroação a data de 15 de março de 2017.
Além disso, para o que aponta essa decisão? Quais lições se pode aprender de todo esse imbróglio?
Os governos federais, sucessivos no tempo (isto é, os passados, atuais e futuros) devem passar a cumprir a Constituição, a fim de evitar esse tipo de derrota judicial. Os governos não podem mais apostar no lucro das inconstitucionalidades, crendo que os contribuintes não litigarão em busca de seus direitos. É imprescindível aos governos escutar com mais atenção a equipe da consultoria prévia da Advocacia da União, e não colocar a batata quente nas mãos da equipe do contencioso da Advocacia da União, pois, embora os dois setores sejam compostos de profissionais qualificadíssimos, nem sempre a equipe do contencioso da AGU faz milagres ao utilizar inadequados argumentos consequencialistas, ameaçando o STF com o impacto dessas decisões nos cofres públicos. É necessário também estar atento ao Anexo de Riscos Fiscais das sucessivas Lei de Diretrizes Orçamentárias, nas quais tais impactos devem estar dimensionados, através da provisão adequada de recursos, apontando os riscos judiciais entre possível, provável e remoto, como acontece em qualquer organização social. Ou seja, mais advocacia preventiva e menos advocacia litigiosa.
Tudo indica também que, em razão dessa decisão, haverá forte impacto na arrecadação do fisco federal, o que poderá ensejar majoração de carga tributária. O ideal é que se iniciassem estudos para uma verdadeira reforma tributária, com “r” maiúsculo, que remodelasse o sistema tributário nacional (ler aqui).
Para os contribuintes em geral, essa decisão aponta para a necessidade estarem mais atentos à litigância fiscal, pois, se não ingressarem em juízo no momento adequado, podem vir a ser apanhados por uma decisão de efeitos modulados do STF que lhe acarrete grandes perdas. É o velho provérbio: O Direito não socorre a quem dorme.
É isso, gostemos ou não.
Fernando Facury Scaff é professor titular de Direito Financeiro da Universidade de São Paulo (USP), advogado e sócio do escritório Silveira, Athias, Soriano de Mello, Guimarães, Pinheiro & Scaff Advogados.
Fonte: Consultor Jurídico