A crise do novo coronavírus é multidimensional. É sanitária, social, econômica e desdobra-se também em áreas como a educação. Mas, engana-se quem pensa que o impacto restringe-se a adequação das formas de ensino ante a impossibilidade de aulas presenciais. A pandemia afeta um dos aspectos historicamente mais problemáticos na rede pública: o financiamento.
Com o recuo das atividades econômicas, desde março, estados e municípios têm queda na arrecadação de impostos usados para custear a educação. No Ceará, já são quase 90 dias de acentuação do dilema crônico e a dificuldade financeira recai na manutenção das atividades de todos os níveis de ensino: do infantil ao médio.
A Associação dos Municípios do Estado do Ceará (Aprece) diz que o Fundo de Manutenção e Desenvolvimento da Educação Básica e de valorização dos profissionais da educação (Fundeb) vem em queda no Estado desde 2013 e, com a pandemia, em 2020, pode perder até R$ 840 milhões. Ou seja, esse valor deixará de ser aplicado no custeio e no desenvolvimento das redes públicas de ensino no Estado.
O Fundeb é o principal recursos disponível para a educação básica no Brasil, sendo utilizado por governos estaduais e prefeituras para, dentre outros, pagar professores, diretores e demais funcionário, assegurar manutenção das escolas, adquirir equipamentos, garantir transporte escolar e financiar ações da área de ensino.
O Fundo é um conjunto de poupanças dos 26 estados e do Distrito Federal, onde cada um deposita a parcela de 20% da arrecadação de receitas de impostos vinculados à educação, como, por exemplo, o ICMS e o IPVA. Após essa junção, o dinheiro de cada uma dessas contas é automaticamente dividido entre prefeituras e o governo estadual. Isso segundo o número de alunos matriculados em cada ano. O Governo Federal completa esse caixa com recursos extra de 10% das receitas dos estados. Esse dinheiro adicional retorna para os municípios mais pobres.
A projeção feita pela Aprece é que os 183 municípios do Ceará (exceto Fortaleza) devem perder R$ 537 milhões de recursos do Fundeb em 2020, em decorrência da pandemia. Já Fortaleza, estima o presidente da Aprece, Nilson Diniz, o prejuízo deve ser de R$ 110 milhões. Para o Governo Estadual, o cálculo da Aprece prever uma perda de R$ 192 milhões do Fundeb neste ano.
A reportagem solicitou à Secretaria de Educação do Estado (Seduc) informações sobre o impacto da baixa de arrecadação no Fundeb durante a crise do coronavírus, mas a Seduc informou, em nota, apenas que “a queda na arrecadação de impostos, especialmente do ICMS, principal fonte de recursos que compõe a cesta do Fundeb é uma realidade nacional. No Ceará, o acumulado nos últimos dois meses mostra uma redução de 39% do repasse”.
Avaliação
Mas, diante dessa queda de arrecadação, como garantir o custeio da rede? O que está sendo mais afetado? Como manter as atividades educacionais? A estimativa é que a retração de verbas prejudique, sobretudo, o pagamento de salários de professores, que, em alguns municípios do Estado, segundo a União Nacional dos Dirigentes Municipais de Educação (Undime) no Ceará, chega a ser 100% financiada por dinheiro do Fundeb.
O presidente da Aprece, Nilson Diniz, relata que desde 2013 o Ceará vivencia “um aumento de despesas e diminuição de receitas no Fundeb ano a ano”. O momento atípico, agora, aliado à permanente dificuldade de recursos, preocupa. “O que nós devemos ter? Dificuldades de pagamento a partir de agosto. O dinheiro do Fundeb já era pouco. Imagine agora que ele diminui, então, o déficit aumenta”, explica o presidente da Aprece, Nilson Diniz e acrescenta: “Hoje, a grande maioria dos municípios arranja dinheiro de outra fonte para investir na educação. Para pagar funcionário e para pagar os outros investimentos que a educação necessita”.
Além disso, o efeito da falta de verba recairá diretamente sobre os gastos com transporte escolar e estrutura das escolas. Bem como, também incidirá sobre as possibilidade de investimento em novos programas e projetos. “Isso gera uma preocupação muito grande porque nós temos despesas fixas, um percentual muito grande de comprometimento de folha. A grande maioria dos municípios utilizam para pagar folha e vão buscar o resto na contrapartida das prefeituras”, ressalta a presidente da Undime Ceará, Luiza Aurélia.
No que diz respeito aos Estados, as perdas de verbas que se tem para investir em manutenção e desenvolvimento do ensino variam entre R$ 9 e R$ 28 bilhões neste ano, segundo estimativas do estudo “Covid-19: Impacto Fiscal na Educação Básica – O cenário de receitas e despesas nas redes de educação em 2020”, feito pela Todos Pela Educação – organização da sociedade civil – e pelo Instituto Unibanco. “Esse valor é uma agregação dos números de cada estado. Cada estado vai ser impacto pela queda de arrecadação”, reitera o coordenador de projetos do Todos Pela Educação, Caio Callegar.
Ele explica que como esses recursos destinados à educação bancam principalmente salário do magistério, um dos fortes efeitos é sobre os professores temporários “que é onde as redes de educação têm alguma margem para diminuir custos”. Caio também ressalta “o que vamos assistir em todo o país, é uma certa paralisação do sistema educacional. Tudo o que estava sendo projetado de novas ações, muito provavelmente, vai ficar para 2021, 2022” e estima que “muitas escolas vão sair da pandemia sem condição de manutenção básica da infraestrutura”.
Despesas adicionais
Além da baixa arrecadação, as redes escolares têm de lidar, no atual momento, com os custos gerados pela paralisação das aulas presenciais e os novos gastos com a reorganização das ações pedagógicas. Em Fortaleza, Geovane Rodrigues, aluno do 3º ano do Ensino Médio é um, dentre 423 mil estudantes da rede estadual que passam por esse processo de adaptação.
Na escola que ele estuda, conta, a “a estrutura é boa, apesar de ser pequena”, mas “antes da pandemia estávamos apenas sem professor de inglês e educação física”. Apesar dessas lacunas nas aulas presenciais, avalia o estudante, a situação era bem menos complicada do que agora. “Há conteúdos que realmente são complicados para ser ensinado a distância, assim não conseguimos pegar e é mais complicado para nós do 3°, pois tem o Enem, e o sonho de se formar”.
Os conteúdos são repassados pela internet e aplicativos de conversa. Geovane também recebe o cartão de vale-alimentação que garante ao estudantes um benefício de 80,00 divididos em duas parcelas. O cartão deve ser usado para a compra de produtos alimentícios.
Conforme o estudo do Todos Pela Educação e Instituto Unibanco, 22 unidades da federação juntas, dentre elas o Ceará, gastaram até agora adicionalmente R$ 840 milhões para garantir ações para ensino remoto, segurança alimentar, formação de professores para a educação remota e compra de materiais extras.
A Seduc também foi questionada sobre os gastos extras nesse período, mas disse apenas que, dentre outras ações, além das atividades remotas, os professores estão elaborando atividades impressas para alunos que não têm acesso à internet, as Coordenadorias Regionais de Desenvolvimento da Educação (Credes) e as escolas viabilizam a entrega do material em domicílio de diversas maneiras e foi firmada uma parceria com a TV Ceará (TVC) para a transmissão de aulas das diversas disciplinas, de segunda a sexta-feira, às 14h.
A nota também informa que a Seduc, em consonância com o Conselho Nacional de Secretários de Educação (Consed), “entende que a promoção do ensino público de qualidade, de forma equitativa, demandará também esforços emergenciais de cooperação federativa para possibilitar que as redes estaduais e municipais tenham condições orçamentárias de garantir o acesso de todos os estudantes ao direito constitucional à educação de qualidade”.
Preparo para retorno às aulas
A data exata da volta às aulas presenciais da rede pública no Ceará ainda não foi divulgada. Mas gestores já se preparam para as demandas desse momento. “Nós vamos precisar garantir vidas e seguir protocolos sanitários. Adquirir EPIs e insumos para dar garantia que preserve a vida dos alunos e profissionais. Vamos necessitar de recursos”, diz a presidente da Undime Ceará, Luiza Aurélia.
Já Ricardo Henriques, superintendente executivo do Instituto Unibanco, instituição que junto ao Todos Pela Educação, realizou a pesquisa sobre o impacto fiscal da Covid na educação, explica que tanto no atual momento, como na retomada das aulas, as gestões precisam atuar para reduzirem o efeito da crise. “Tem que organizar agora para que a retomada presencial e semipresencial das aulas seja adequada”, indica, e acrescenta que o retorno às atividades demandará capacidade de resposta das redes de ensino ao aumento da evasão escolar, à chegada de alunos da rede particular e à ausência de profissionais que são do grupo de risco.