Em vários textos nessa coluna, apresentei algumas críticas à regressividade de um sistema tributário altamente concentrado na tributação sobre o consumo e sobre aspectos problemáticos de tal ênfase, notadamente em relação aos problemas de nosso país, marcado por elevado grau de desigualdade regional e social. Mas também deixei claro que, havendo vontade democrática na reforma da tributação sobre o consumo, que seria importante buscar, de fato, as lições de um bom tributo sobre o valor adicionado. Sigo nessa linha, buscando convergência no debate sobre a melhoria de nossos tributos sobre o consumo (ICMS e ISS), mas sem fazer uma defesa acrítica na importação de ideias que forcem uma realidade que a elas não se adapta tão facilmente.
A iniciativa do governo federal tem vários aspectos positivos, mas incorre em possíveis e sérios problemas, que eu poderia agrupar, simploriamente, em dois tipos: I) os de natureza econômica; e II) os de natureza jurídico-tributária. Nesse texto, pretendo apenas abordar os do primeiro tipo, fazendo o registro de que existe, de fato, uma tensão na tentativa de transmutar uma tributação de base atuarial sobre a receita bruta devida pelos empregadores e tomadores de serviço para um tributo sobre o consumo. A União Federal foi, ao longo dos anos, tomando para si uma competência que não lhe cabia.
Começo o texto com uma afirmação breve, porém enfática, já mencionada em palestras minhas alhures: um bom tributo decorre da relação entre I) a sua estrutura normativa, II) a sociedade e as respectivas instituições que o adotarão, III) a sua carga tributária potencial e IV) quem o pagará efetivamente.
Infelizmente, a defesa dos projetos tem sido dominada pela argumentação em torno da estrutura de um bom IVA/IBS (as recomendações da OCDE, para simplificar), com poucas considerações sobre o país em que se pretende que ele opere (e suas instituições) e, sobretudo, sobre qual o limite de carga tributária que um bom tributo aceita antes que se transforme em um pesadelo.
O remédio que cura também é o que mata, a depender da dose prescrita. Assim, um tributo simples e necessário como o IPTU terá uma boa estrutura enquanto não se estabelecer alíquotas exageradas (imagine-se uma a 50%!). Ou seja: não adiantaria uma defesa apaixonada do IPTU per se sem, antes, saber sua carga tributária potencial. O tributo não é bom somente a partir de sua estrutura.
Sobre as instituições, deve-se lembrar que copiar a regra de incidência abstrata de um tributo da Nova Zelândia não transforma as instituições brasileiras imediatamente. Nossa sociedade é outras e nossa cultura desenvolveu-se de forma diversa. Uma nota técnica que avalie positivamente um IBS da PEC 45, pressupondo que a litigiosidade deixará de existir porque a estrutura normativa do novo imposto é boa, ignora o papel das instituições em nossa sociedade. A litigiosidade não decorre somente de textos normativos, decorre de uma cultura arraigada de animosidade entre fisco e contribuinte. Bons textos normativos diminuem o potencial de conflitos, mas eles não rodam no abstrato, elas operam nas relações concretas.
Não se pode esquecer a história! A novidade de hoje é a repetição da revolução de ontem. Recentemente, em sala de aula, revistei as justificativas econômicas dadas para a implementação da não-cumulatividade da Cofins, presente na nota técnica do Ministério da Fazenda [1]. Em síntese, alegou-se que se obteria:
— Expressivo ganho de eficiência econômica;
— Redução do artificialismo nas decisões dos agentes sobre a estrutura de seus negócios (verticalização);
— Que empresas de um mesmo setor econômico tivessem distintas cargas tributárias;
— Melhor alocação dos fatores de produção;
— Carga tributária para o consumidor final correspondente à alíquota nominal;
— Desoneração dos bens de capital;
— Desoneração completa das exportações, com os créditos acumulados na aquisição dos insumos podendo ser compensados na própria apuração, já que os mecanismos de ressarcimento seriam lentos e complexos;
— Definição da alíquota da nova sistemática apenas para preservar a arrecadação do tributo atual, sem aumento da carga tributária.
Ou seja, completa-se a cartela do bingo em instantes em uma reunião de defesa sobre IBS/CBS, atualmente. Uma reforma da tributação sobre o consumo pode alcançar alguns desses objetivos, mas se deve alertar que promessas simples são facilmente quebradas, daí a necessidade de se estudar os textos das propostas e não o material encarregado de construir novas narrativas.
Uma reforma legislativa pode ser motivada pela fé de seus proponentes, mas o texto final precisa ter os elementos necessários para guiar a sua aplicação nas próximas décadas. As apresentações em Power Point ficarão para trás, assim como as lives. Em termos ainda mais diretos: tributar todos os consumidores por todas as operações pode ser uma narrativa, mas o que determinará a incidência tributária e o grupo de contribuintes jurídicos e os repasses econômicos é a lei posta e sua aplicação (metódica) jurídica.
Desejo profundamente que se tenha aprendido a lição de que o projeto de não-cumulatividade do PIS e da Cofins foi a ideia de eficiência e transparência vendida a nós em 2002 e que foi pessimamente entregue como direito positivo (a ausência de definição de insumos fica como o maior fiasco de nossa história recente, que custou bilhões aos cofres públicos e gerou insegurança ao investimento porque alguns poucos arquitetos institucionais nos seduziram com suas comparações internacionais idealizadas técnicas).
Pois bem, feitas as considerações iniciais, chamo a atenção, agora, a certos argumentos que chamarei de econômicos e que precisam ser aprimorados no projeto federal de criação da CBS. A vantagem da iniciativa federal é a de se ter um projeto de texto legal concreto para se analisar, o que possibilita um bom ensaio crítico, inclusive em relação a eventual projeto de lei complementar a regulamentar as inovações propostas nas emendas constitucionais apresentadas.
1) Aumento da carga tributária
Tem-se defendido o projeto culpando os críticos de não saberem fazer conta ou de desconhecerem a distinção entre cálculo por dentro ou por fora. A premissa de todas as reformas é de que não haverá aumento global de arrecadação. O ministro da economia chegou a se comprometer publicamente (novamente a distinção entre narrativa e texto de lei se faz presente, já que não há mecanismo de revisão da carga no projeto) de que abaixaria a alíquota se houvesse aumento global.
Em primeiro lugar, nunca houve reforma tributária desde 1930 que não tenha acarretado aumento de arrecadação, incluindo PIS e Cofins não cumulativo em 2002 e 2003. Em palestras tenho apontado tal assertiva de forma gráfica.
Segundo, se a comparação for em termos nominais, pouco se sabe se a economia daqui a seis meses será a mesma de 2019 (eventual parâmetro de comparação). Em geral, as comparações costumam ser feitas em termos de valor arrecadado e não em proporção de PIB; mas, ainda que assim seja, pouco se sabe sobre o efeito da crise fiscal da Covid-19 sobre os próximos anos.
Além disso, uma alíquota padrão do regime não cumulativo de 9,25% por dentro corresponde a 10,19% por fora. Nessa conta singela, 12% será superior. Verdade que os créditos serão mais amplos; por outro lado, inúmeros regimes foram revogados. Além disso, muitas empresas estão submetidas a uma alíquota de 3,65% (3,79% por fora). Por fim, muitas atividades, notadamente de prestação de serviços, sairão de alíquotas inferiores (como 3,65%) para 12% e não darão direito a crédito a seus consumidores (pessoas físicas) [2].
Justamente nesse caso, os defensores da CBS buscam desqualificar a crítica, alegando se tratar de ignorância quanto à forma de apuração não cumulativa, em que ninguém recolhe do próprio bolso, apenas repassa recursos ao governo e passa adiante o crédito. Ora, o recorte isolado de um elo da cadeia em que alguém presta serviço e repassa crédito é absolutamente irreal, seja porque ignora o baixo volume de créditos que o prestador consegue utilizar, seja porque diminui a repercussão dos tributos sobre os consumidores finais pessoas físicas (nós, a população), seja, ainda, porque ignora que a economia é uma relação de produção com insumos e serviços, de atividades diretas e indiretas, em que, havendo aumento da carga dos prestadores intermediários, haverá repercussão nos preços gerais e diminuição de renda de inúmeros consumidores.
Nos exemplos acima, todos aqueles serviços e bens consumidos pelas pessoas naturais sofrerão o repasse dos tributos que foram sendo acrescidos na cadeia e, quando o aumento ocorre justamente na entrega ou na etapa final, isso será repassado à sociedade, reforçando o caráter regressivo da tributação sobre o consumo. Em termos mais diretos: serviços médicos (aguardem a revogação da autorização legal para dedução no imposto de renda), de educação (idem); telecomunicações (internet, celular, telefonia fixa), livros, streaming terão sua tributação majorada.
O governo prestará um desserviço se continuar insistindo em dar exemplos numéricos incompletos ou, como o faz na cartilha de perguntas e respostas (pergunta 1.11), se mostrar que uma alíquota nominal de 12% por dentro ou por fora representa cargas tributárias distintas, mas a induzir que o cálculo por fora da CBS seria inferior aquele por dentro do PIS e da Cofins, mas sem apontar que a alíquota por fora desses tributos atuais é, em verdade, inferior a 12% [3].
2) Tendência a uma alíquota desastrosa de IBS e CBS total (federal, estadual e municipal)
Como afirmado acima, não adianta copiar uma bela estrutura de tributo e errar na definição de sua alíquota. Nesse sentido, como a proposta federal é de 12% (cálculo por fora), sobraria apenas 13% de espaço para um IBS estadual e municipal se se quisesse manter uma alíquota alvo de 25%. Os estudos iniciais apresentados em diversos seminários por representantes do CCiF, contudo, apontavam para a necessidade de uma carga estadual de 13,8% e uma municipal de 2,0% para se manter o atual nível de arrecadação.
A soma de todas essas alíquotas gera como resultado uma carga tributária sobre bens e serviços de, no mínimo, 28%, se não houver alguma mudança, e já se ouve falar em alíquotas bem superiores. Tal carga colocaria o Brasil como o país de maior alíquota nominal de IVA/IBS/CBS dentre as nações acompanhadas pela OCDE. Certamente, muitos patrocinadores da reforma se sentirão traídos se fizeram suas simulações de impacto baseados em uma alíquota de 25% e descobrirem uma de 30%.
3) Regressividade
Se a tributação no Brasil é concentrada no consumo (perto de 50%), uma maior concentração (aumento) dessa imposição terá efeitos negativos, que recairão de forma mais acentuada sobre os que possuem menos renda (regressividade). Tudo isso, diga-se, porque a União Federal buscou para si uma forma de tributação que nunca lhe coube (tributação sobre o consumo). A autorização constitucional sempre foi para tributar a receita bruta apenas para fazer frente aos gastos da seguridade social.
Esses pontos, aqui elaborados de forma rápida, demonstram que falta muita transparência para o debate democrático sobre números, ganhadores e perdedores.
Uma cartilha que escolhe exemplos em que a comparação entre a alíquota anterior (por dentro) e a proposta (por fora) é de redução da carga deveria ser repensada.
A eleição dos advogados como ignorantes de matemática, mal intencionados e defensores apenas de sua categoria é outro espantalho que pouco contribui para o amadurecimento da proposta.
Enfim, trata-se de um jogo de ganhadores e de perdedores (porque alguns setores pagarão mais) arriscado, porque os vencedores ainda desconhecem a alíquota do IBS total (incluindo a proposta federal) e a tal história de que não interessa a alíquota do tributo porque você apenas destaca e o oferece de crédito para o próximo da cadeia econômica só funciona no discurso.
Estudos econômicos que apontem ganhos de eficiência baseados em diminuição de custo de conformidade e fim da litigiosidade avaliam um crescimento que não tem como ser entregue, pela simples razão que a litigiosidade não se encerra imediatamente (o tributo antigo de hoje será fiscalizado daqui a cinco anos e gerará um processo que durará uns quinze anos, acrescido de mais dez anos de vigência do sistema atual, conforme previsto na PEC 45).
E a redução a complexidade das obrigações acessórias é promessa cujo conteúdo pouco se sabe. Em texto anterior, tratei disso. O ambiente institucional que se vive, não permite a ilusão de que a mera redação de novo tributo apaga todos os aspectos culturais e sociais inerentes às instituições.
José Maria Arruda de Andrade é professor associado de Direito Econômico e Economia Política da Universidade de São Paulo (USP), livre-docente e doutor pela mesma instituição. Foi secretário-adjunto da Secretaria de Política Econômica do Ministério da Fazenda e pesquisador visitante no Instituto Max-Planck de Inovação e Concorrência em Munique (Alemanha).
Fonte: Consultor Jurídico