Guerra Fiscal: Como a política de incentivos fiscais no Nordeste deve ser impactada com a reforma tributária

725

Com a reforma tributária e o iminente fim do ICMS, imposto estadual que é a principal barganha para os estados atraírem investimentos por renúncias fiscais, Consórcio Nordeste articula criação de fundo de desenvolvimento que resguarde o industrialização da Região

Uma guerra está em andamento no Brasil há pelo menos 35 anos e agora esse conflito chegou a um ponto decisivo. A disputa entre os estados para atrair investimentos a partir de incentivos fiscais é um dos temas centrais e mais espinhosos da reforma tributária a ser discutida em 2023. Em regiões historicamente menos industrializadas e com déficits de infraestrutura, como o Nordeste, há o temor pelo futuro da Região.

Gabriel Quintanilha, doutor em Direito, mestre em Economia e professor de Direito Tributário, observa que o cenário da Guerra Fiscal no Brasil é fomentado desde a Constituição de 1988 com a divisão da competência tributária entre os entes federados.

Uma vez que nós passamos a ter uma legislação de Imposto sobre Circulação de Mercadorias e Serviços (ICMS) para cada estado, uma legislação de Imposto Sobre Serviços (ISS) para cada município, inicia a disputa. Quintanilha explica que os estados reduzem o ICMS para atrair empresas para o seu território e, com isso, muitos estados grandes ou estados que têm dificuldades de caixa não conseguem manter o nível de arrecadação perdendo suas empresas que estavam lá constituídas.

Gabriel acrescenta que, a partir das transferências de investimentos entre os estados que oferecessem mais benefícios, um problema se instaurou. “Esse cenário é muito ruim para a competitividade, uma vez que os estados cobram menos ICMS sem que haja uma contrapartida, aparentemente melhoram sua condição, mas estão perdendo arrecadação”.

Com a reforma tributária, definindo um Imposto de Valor Agregado (IVA) federal, temos a centralização da arrecadação e acaba com esses conflitos regionais relativos ao ICMS. O tributarista, no entanto, destaca que é importante que os estados que tenham benefícios fiscais estejam atentos porque a mudança faria com que eles perdessem seu principal atrativo.

O Consórcio Nordeste, por exemplo, se mobiliza para ter uma posição bem definida quanto aos interesses da Região na reforma tributária. Em reunião realizada nessa semana, em João Pessoa-PB, governadores, deputados e senadores nordestinos, incluindo o presidente da Câmara, Arthur Lira (Progressistas-AL), o tema foi discutido.

A discussão segue em andamento e a tentativa é emplacar a criação de um fundo de desenvolvimento para o Nordeste. Carlos Eduardo Xavier, secretário de tributação do Rio Grande do Norte e presidente do Comitê Nacional de Secretários de Fazenda, Finanças, Receita ou Tributação dos Estados e do Distrito Federal (Comsefaz), destaca que a votação no Congresso deve acontecer antes do recesso do meio do ano e que os estados não temem o fim do ICMS. “A guerra já existe. O cenário de hoje é o pior de todos”.

Como a reforma tributária deve implementar um Imposto de Valor Agregado (IVA) unificando todos os impostos, a “Guerra Fiscal” entre os estados deve acabar, no entanto, sem a formulação de uma compensação aos menos desenvolvidos, a fuga de indústrias poderia ocorrer. Com o fundo, os estados teriam liberdade para investir em infraestrutura e teriam poder de barganha na atração de investimentos.

A criação do fundo parece pacificada, mas algumas definições importantes precisam ser feitas, como a fonte dos recursos para o fundo. “O fundamental é que o fundo tenha fonte de financiamento porque ele deve ser, no mínimo, do tamanho das renúncias que os estados têm hoje ofertados para a indústria. Com esse recurso, ao invés de atrair e manter essas empresas com renúncia fiscal, vai fazer uma subvenção, então deve haver para os estados uma questão orçamentária, mudando a lógica”.

Dentre os temas postos à mesa, o governador do Ceará, Elmano de Freitas, destaca que o Nordeste merece tratamento especial. Os estados temem que o fim dos incentivos fiscais provoquem a perda de competitividade da Região na atração de investimentos, ainda mais num período de avanço da industrialização via energias renováveis, que é prodigiosa na Região.

“O principal ponto é que tenhamos um equilíbrio para que o setor produtivo possa gerar mais emprego e renda para o nosso povo. E o segundo é que o Nordeste tenha um tratamento diferenciado para a atração de investimentos”, afirmou no encontro.

Os efeitos da Lei Kandir: a primeira proposta de solução que gerou prejuízos aos estados

Após anos de disputas ferrenhas entre os estados, foi desenvolvida uma tentativa, frustrada, de apaziguar a guerra fiscal. A “Lei Kandir”, feita pelo então ministro do Planejamento Antonio Kandir, tornou-se a Lei Complementar 87/1996 e que depois foi alterada por várias outras leis complementares.

Contemporânea ao Plano Real, a Lei Kandir fez parte de um pacote econômico. O objetivo inicial era desonerar o ICMS sobre exportações, sobretudo para produtos primários e semielaborados, com a finalidade de aumentar o saldo da balança comercial. No entanto, essa desoneração promovida pela União gerou perda de arrecadação aos estados.

Apesar do aumento do saldo das vendas internacionais, as perdas dos estados foram maiores, por isso buscaram recomposição na Justiça. Um dos exemplos foi o do Pará, que deixou de arrecadar R$ 20 bilhões de ICMS nos 16 anos de vigência da lei, enquanto a União repassou como “seguro-receita” apenas R$ 5,5 bilhões.

Por isso, em 2020, o Supremo Tribunal Federal homologou um acordo com a União para ressarcimento das perdas dos estados, num montante de R$ 65,6 bilhões parcelados até 2037.

A partir deste histórico, os autores da publicação no Senado Federal entendem que, “na ausência de um arranjo melhor e diante da possibilidade de perder graus de liberdade nesse tipo de política”, os governos estaduais não devem aceitar bem qualquer tentativa de tutela federal. Assim, salientam “o recente processo de rediscussão institucional” em evolução no Brasil.

Fernandes e Wanderlei pontuam que há um processo de substituição, do Governo Federal pelos governos estaduais, no papel de implementador de políticas regionais de desenvolvimento. “Da mesma forma, devido aos efeitos da “globalização”, crescem as evidências da fragilização dos estados nacionais, cada vez mais incapazes de operar políticas macroeconômicas com um mínimo de autonomia e, na sua maioria, presos a situações de deterioração fiscal altamente restritivas”.

O QUE É GUERRA FISCAL

O conceito acadêmico do fenômeno da “guerra fiscal” trata-se, em termos econômicos, da disputa fiscal no contexto federativo, com a intensificação de práticas concorrenciais extremas e não-cooperativas entre os estados.

A principal forma de atuar nesta “guerra” é pela manipulação das alíquotas de determinados tributos (nos estados, especialmente o ICMS) o que se torna ponto central na gestão de políticas industriais.

Nas definições mais explicativas do que significa “guerra fiscal”, o conceito é definido como a disputa entre os países, estados federativos e municípios em busca de atrair investimentos para gerar um processo de industrialização da economia local com geração de emprego e renda.

No Brasil, a disputa foi ficando mais ferrenha ao longo dos anos, num verdadeiro “cabo de guerra” entre as administrações com a oferta de incentivos fiscais.

No cenário ideal, a gestão local abrir mão de impostos seria um diferencial no condicional oferecido às empresas investidoras, que, prioritariamente buscam outras características, como infraestrutura, mão de obra qualificada e proximidade com o mercado consumidor. No entanto, o incentivo foi ganhando maior apelo, ao ponto de muitas administrações não levarem em consideração outros fatores diferenciais.

E, ao abrir mão da arrecadação de impostos, os estados e municípios perdem fonte de recursos e, assim, verba para melhorias de infraestrutura. Uma das consequências disso é que algumas gestões apelam para o aumento da carga tributária sobre os cidadãos.

De acordo com o estudo “A questão da guerra fiscal: uma breve resenha”, dos pesquisadores André Eduardo Fernandes, economista e consultor legislativo no Senado Federal, e Nélio Wanderlei, auditor tributário do Distrito Federal, o atual sistema chegou a um ponto problemático, mas as especificidades da economia brasileira impõem grandes desafios para o processo de mudanças mais profundas.

O estudo detalha que, sob um ponto de vista muitas vezes de curto prazo, de atração de empresas com oferta de benefícios fiscais (principalmente com cortes de ICMS), não se analisou a questão de forma ampla sem antever as consequências de longo prazo.

“Na medida em que a ‘guerra’ não se trata de um jogo de soma positiva (isto é, a transferência de investimento resulta necessariamente em perda de receita e empregos para alguém), a Federação, que é uma relação de cooperação entre as unidades de governo, é enfraquecida”, diz o estudo.

Fonte: O Povo

Precisamos de reforma do Pacto Federativo

O Ceará deve abrir mão de R$ 2,3 bilhões apenas em 2023 em renúncias fiscais de ICMS. Conforme estimativa da Associação Nacional de Associações de Fiscais de Tributos Estaduais (Febrafite) que mostra que o valor é 58% maior do que o destinado em 2022 (R$ 1,4 bilhão).

Esse movimento na concessão de benefícios neste ano motivou uma auditoria do Tribunal de Contas do Estado (TCE) que avaliou a governança dos incentivos fiscais do Fundo de Desenvolvimento Industrial (FDI) e cobrou providências aos gestores da Secretaria de Desenvolvimento Econômico (SDE) e da Agência de Desenvolvimento Econômico (Adece).

A auditoria cobra que a SDE promova a reformulação do marco regulatório do FDI. “O intuito é averiguar se os incentivos fiscais concedidos são permanentemente avaliados quanto ao alcance dos resultados relacionados à atração de investimentos e ao desenvolvimento econômico e social”, diz o TCE em nota.

Na avaliação do pesquisador sênior do Observatório de Finanças Públicas do Ceará (Ofice), centro de pesquisas da Fundação Sintaf, Lúcio Maia, da forma como está, é difícil saber se esses recursos que deixam de entrar como impostos realmente se transformaram em emprego e renda.

Por isso, Lúcio defende que a reforma tributária venha junto de um aprimoramento do Pacto Federativo. “Necessitamos de uma revisão do Pacto Federativo para dividir melhor esse bolo tributário e o que é distribuído entre União, estados e municípios.”

O pesquisador enfatiza que atualmente, cerca de 60% da arrecadação de impostos no País ocorre via tributos federais (como IOF, IR, Pis/Pasep), enquanto 28% de impostos estaduais (como IPVA e ICMS) e 5,5% de impostos municipais (como IPTU e ITBI). Como forma de recomposição, a União realiza repasses via Fundo de Participação dos Estados (FPE) e Municípios (FPM).

Fonte: O Povo

 

1 COMENTÁRIO

DEIXE UMA RESPOSTA

Please enter your comment!
Please enter your name here