Analistas veem ‘contabilidade criativa’ e ‘pedalada’

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Anúncio do governo é criticado e especialistas apontam indícios de irresponsabilidade fiscal

As saídas apresentadas ontem pelo governo federal para financiar o novo programa de transferência de renda, incluindo o uso de recursos de precatórios e da educação, foram consideradas “contabilidade criativa” e sofreram duras críticas de especialistas em contas públicas. Eles dizem ver nas medidas claros indícios de irresponsabilidade fiscal – inclusive, de ilegalidade-, iniciativas que flertam com as noções de calote e pedaladas e tentativas de burlar o teto de gastos.

A ideia de usar precatórios é “absurda”, “estarrecedora”, “quase indecente” e ilegal, no entendimento de Carlos Kawall, diretor do ASA Investments. O governo quer limitar os gastos com precatórios em 2% da receita corrente líquida e usar o restante para o Renda Cidadã. Sob um aspecto, a ação poderia ser considerada uma “pedalada”, diz Kawall, já que uma despesa que deveria ser reconhecida e executada agora será jogada para frente. Para ele, no entanto, a situação, se confirmada, seria ainda pior do que as “pedaladas” de 2014 – que levaram ao impeachment de Dilma Rousseff (PT) -, quando foram usados mecanismos para empurrar gastos obrigatórios para outros meses ou para bancos ajudarem a financiar despesas.

Ex-secretário do Tesouro Nacional, Kawall explica que, se o pagamento do precatório é determinado no primeiro semestre de um ano, o governo pode incluir a despesa no Orçamento do ano seguinte. Se a decisão sair no segundo semestre, fica para o ano subsequente. Os precatórios são constituídos como dívidas e, embora não sejam capturados nas modalidades do Banco Central para cálculo da dívida bruta ou líquida, observa Kawall, existem circunstâncias claras para seu pagamento.

“Se você arbitrariamente diz que pode pagar, mas não vai, que vai jogar para frente, prejudicando o credor, e ainda fazendo isso para gastar mais, mas não em troca de uma despesa que cortou, sem promover ajuste nenhum, você simplesmente está usando um subterfúgio para cumprir o teto”, afirma.

Nesse sentido, Kawall também diz que a medida desrespeita a Lei de Responsabilidade Fiscal (LRF), porque cria despesa nova permanente sem apontar receita equivalente e/ou redução nos gastos em igual valor. “É uma medida absurda, irresponsável do ponto de vista fiscal e acredito que ilegal.”

Kawall vê riscos ainda de elevação da dívida à frente. “Você diz que vai trocar uma despesa hoje [dos precatórios], que vai gastar menos com ela para gastar com o programa [Renda Cidadã], mas não é verdade, lá na frente você terá um gasto ainda maior, porque em algum momento você vai estar pagando o programa assistencial e os precatórios.”

Marcos Mendes, pesquisador associado do Insper, afirma que a solução via precatórios é “contabilidade criativa”. “Precatório é despesa obrigatória, tem que ser paga. Se não vai pagar, é postergação de despesa.” Segundo ele, “está se financiando junto aos credores do erário para fazer novas despesas”.

Ana Carla Abrão, diretora da Oliver Wyman no Brasil e ex-secretária de Fazenda de Goiás, também vê “contabilidade criativa” tanto no adiamento dos precatórios quanto no uso de recursos do Fundeb, “uma forma de furar o teto de gastos clara e cristalina”, diz. Para ela, o governo deu “claros indicativos de que está flertando com a irresponsabilidade fiscal”, colocando em risco o futuro do país.

Economistas dizem ainda que o uso dos precatórios como anunciado remete a calote. Kawall reforça que não se está repudiando o pagamento da dívida, mas o governo quase diz que “vai pagar quando puder”. “Em bom português, não pagar uma dívida é o quê? Calote.” O economista observa ainda que agências de classificação de risco podem entender a decisão de discriminar credores como “default seletivo”, levando a um rebaixamento da nota de crédito do Brasil.

“Tem jeito de calote, cara de calote, tem tudo para ser definido como tal. Só não é porque não declarou que não vai pagar, mas que vai seguir um fluxo ligado à receita. Isso é muito ruim, porque os afetados não terão certeza de quando irão receber”, diz Felipe Salto, diretor-executivo da Instituição Fiscal Independente (IFI), vinculada ao Senado. Para ele, “não tem como a dívida não aumentar”.

Os especialistas se mostraram especialmente surpresos porque as medidas parecem ter passado pelo aval não só do governo e de lideranças, como também do ministro Paulo Guedes. “Isso que acho que traz uma grande preocupação no momento”, diz Kawall. “Nós temos um problema sério de credibilidade das contas públicas e com essas confusões o governo não ajuda em nada”, afirma Roberto Ellery, da Universidade de Brasília.

Se o governo quer criar um Renda Cidadã, ele precisa encarar escolhas necessárias, diz Ana Carla. Para ela, não dá para alegar que não há recursos no Orçamento. ”Se ele de fato encarar privilégios, encarar revisão de gastos, encontrará R$ 40 bilhões”, afirma. “Não será com soluções criativas e inconsistentes que nós chegaremos lá com responsabilidade fiscal, retomada de crescimento e confiança.”

Fonte: Valor Econômico

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