Por Samuel Quintela e Hugo Renan do Nascimento
Em debate, os impactos do modelo brasileiro atual e do que já foi mencionado pela equipe econômica do ministro Paulo Guedes
A reforma da Previdência é uma das metas-chave do novo Governo Federal, sendo defendida, principalmente, pelo ministro da Economia, Paulo Guedes. Apesar da importância dada ao projeto, não há a confirmação de qual modelo será enviado ao Congresso para implementação do novo sistema. Na expectativa da mudança, especialistas ouvidos pela reportagem confrontaram ideias sobre os regimes de repartição (utilizado atualmente) e de capitalização (sugerido por Guedes).
Entre os argumentos principais estão fraqueza do sistema financeiro brasileiro, que poderia gerar uma crise dentro do regime de capitalização, e a expansão do déficit previdenciário, que poderia ser agravado na continuação do sistema de repartição sem a reforma. De acordo com Marcelo Lettieri, diretor técnico do Sindicato Nacional dos Auditores Fiscais da Receita Federal do Brasil (Sindifisco-CE), é preciso que haja bastante transparência com relação aos números associados à Previdência.
Em outra perspectiva, Ênio Arêa Leão, economista e sócio da Conceito Investimento, defende que o Governo Federal precisa fazer a transição para o modelo de capitalização no menor prazo possível. Leão considera que o sistema de capitalização, no qual cada contribuinte poupa para si mesmo, daria à Previdência nacional uma segurança relacionada ao envelhecimento da população ativa, que deve aumentar o número de aposentados e reduzir a arrecadação.
Repartição
Para o diretor técnico do Sindicato Nacional dos Auditores Fiscais da Receita Federal do Brasil (Sindifisco-CE), Marcelo Lettieri, pela configuração estrutural e política, o sistema mais adequado para o Brasil seria o de repartição, já em uso atualmente. Segundo ele, a aplicação do conceito de capitalização poderia, sim, funcionar, mas algumas questões cruciais precisariam ser discutidas com cautela para que o modelo não entre em colapso nos próximos 30 anos.
Lettieri considera que a transição para um regime de capitalização, híbrido ou completo, como o Governo Federal já discutiu, precisa colocar em pauta os gastos com a alteração de modelos e as deficiências ainda presentes na regulamentação e administração dos fundos de pensão no País. O diretor do Sindifisco defende que a Previdência por capitalização estaria muito sujeita a crises geradas pelos altos e baixos dos ciclos da economia, algo muito forte no sistema brasileiro. “O sistema de repartição tem se mostrado muito mais sólido em vários países do mundo. Já o de capitalização sofre com os ciclos econômicos, pois isso abala os fundos de pensão e pode afetar os rendimentos das aposentadorias de muitas pessoas, principalmente se as coisas estiverem muito concentradas”, disse.
Outra questão relevante seria como o governo faria a transição para o regime de capitalização. Como o sistema atual depende de um pacto de gerações – empregados ativos contribuindo para pagar o benefício de inativos e pensionistas -, ao se forçar a mudança de planos, os gastos com as aposentadorias passariam diretamente para o governo. Na capitalização cada pessoa poupa para o próprio benefício, o que diminuiria a arrecadação previdenciária.
Além disso, Lettieri acredita que as instituições brasileiras ainda não são muito confiáveis, então os fundos de pensão ainda precisariam de uma regulamentação maior. Problemas de administração desses fundos também dificultariam a realização do sistema de capitalização. “O nosso mercado financeiro ainda é pouco robusto, e a experiência com fundos de previdência é baixa. Temos um sistema de regulação ainda deficitário para o sistema de capitais, então precisamos profissionalizar e proibir indicações políticas. Depois que tivermos essa maturidade, nós poderíamos fazer essa transição. Mas eu não arriscaria, pois daqui a 30 anos, poderemos estar recolhendo os cacos, como no Chile, onde 80% dos aposentados recebem entre meio ou um salário mínimo como benefício”, explicou.
Por tudo isso que Lettieri defende que o modelo de repartição poderia continuar sendo utilizado no Brasil, necessitando apenas de algumas atualizações das condições de aposentadoria, como idade mínima e valor de contribuição. “Há um certo exagero no déficit. Eles olham só a arrecadação previdenciária contra a receita, mas a nossa legislação leva em conta outras verbas, outras fontes, como contribuições sociais que contribuem com a Previdência e o sistema seguridade social. E esse sistema entrou em um pequeno déficit apenas no ano passado, mas foi superavitário nos últimos 20 anos”.
Entre as alternativas de atualização do modelo de repartição, segundo Lettieri, está o aumento gradual da idade mínima com o avanço da expectativa de vida. Outra solução seria uma progressiva elevação da contribuição para compensar o déficit de arrecadação.
Capitalização
Segundo o Ênio Arêa Leão, economista e sócio da Conceito Investimento, não há muito espaço para discussões sobre a reforma da Previdência. “Precisamos aguardar qual será o modelo que o Governo vai querer implantar, mas precisamos fazer a reforma e ela precisa convergir para o modelo de capitalização”, afirma. Segundo o economista, o sistema de capitalização deixaria o País “protegido de qualquer mudança de expectativa de vida”, evitando o aumento do déficit com uma ocasional diminuição da arrecadação.
Com o envelhecimento da população, no modelo de repartição, o Governo teria menos pessoas contribuindo para sustentar o benefício dos inativos e pensionistas. Com cada pessoa poupando para a própria aposentadoria, sendo responsável por uma conta individual, esse problema seria resolvido. É nessa perspectiva, que Leão defende a aplicação do modelo de capitalização. Contudo, o economista defende que o modelo poderia ser, inicialmente, de caráter híbrido, adotando um limite para contribuições pelo modelo de repartição e, após esse teto, a pessoa teria a opção de migrar para a capitalização. “É algo que tem que ser feito. O modelo de capitalização deixa protegido de qualquer mudança de expectativa de vida. Então, o modelo ideal seria um híbrido no médio prazo para não tornar a transição muito pesada até porque não sabemos a expectativa de vida daqui a 20, 30 anos. Mas só vai dar para emitir uma opinião quando tivermos um modelo já definido pelo Governo”, disse Arêa Leão.
Apesar da segurança na escolha do modelo, o economista ainda considerou que é preciso haver cuidado na hora da definição das regras de transição, para que nem a população nem o Governo sejam prejudicados. No entanto, essa mudança de modelo precisa ser feita no “menor prazo possível”, segundo ele. Sem a reforma, Ênio defende que a economia brasileira não conseguirá voltar à estabilidade apresentada antes da crise iniciada em 2014.
“Tem vários estudos que mostram que, em torno de 10 anos, o Brasil vai se tornar inviável se não fizermos a reforma da Previdência. Se não acontecer, ou o Governo vai se tornar inadimplente ou o Governo vai ter de emitir moeda, mas isso aumenta a inflação e os rendimentos em poupança vão simplesmente perder valor. A reforma é inevitável”, ponderou.
Sobre o mercado brasileiro de fundos de pensão, Ênio acredita que o Brasil já atingiu uma certa maturidade para que o modelo de capitalização seja adotado, sendo necessário apenas um esforço um pouco maior Governo para continuar regulamentando o setor. “Há uma hipótese de se criar uma agência de Previdência, mas não acho necessário. Se continuarmos regulamentando a atuação dos fundos, nós teremos um mercado muito forte. E temos um volume de recursos bom sendo aplicados. Não precisamos reinventar a roda”, disse Leão.
Contudo, o economista destacou que ainda é cedo para fazer qualquer avaliação da reforma da Previdência, uma vez que o Governo Bolsonaro ainda não apresentou nenhuma proposta consolidada.
“O que está se desenhando, pelo que tem se falado e saído na mídia, é viável mas não temos uma proposta clara ainda. Mas estamos acreditando nesse Governo e que ele conseguirá reformar a Previdência. E precisamos acreditar porque somos todos brasileiros”, comentou Leão.
Militares
Segundo o diretor-geral do Ipece, Flávio Ataliba, os militares possuem características de trabalho diferenciadas das outras profissões. No entanto, ele afirma que é preciso estudar mecanismos para a classe poder dar sua colaboração nesse ajuste. “Não incluir os militares é uma questão política. Eles, na verdade, têm um espectro profissional diferente dos outros trabalhadores. Eles mudam muito de cidade, dão guarda no quartel durante a noite, então tem uma série de especificidades da carreira que acabam não entrando nesse pacote de reformas. Essa é uma questão que tem que ser levada em conta, mas também tem que criar condições para eles contribuírem ao País”.
“Na verdade, você não pode comparar os militares com os profissionais. A atividade profissional dele é de outra natureza. Isso significa que eles não possam de alguma forma contribuir para os ajustes das contas, especialmente das contas previdenciárias. Então é natural no debate que os militares sejam analisados de forma diferente”. Na opinião de Ataliba, é preciso avaliar o tamanho do déficit dos militares para em seguida estudar medidas que possam ajustar o desequilíbrio previdenciário da categoria. “Na verdade, o desequilíbrio previdenciário, tanto dos militares como dos civis, é motivado pelo sistema de repartição. Os jovens trabalhadores na ativa contribuem para os idosos aposentados. Então, isso também acontece quando o militar vai para a reserva. Normalmente, para resolver o desequilíbrio, é necessário aumento de contribuição e redução de benefícios. Não tem outro mecanismo para resolver isso”.
Segundo ele, também tem a questão de os militares serem regidos por uma legislação própria. “A questão é saber se eles conseguem uma fórmula para o militar demorar mais a entrar na reserva e assim ajudar a minimizar o déficit”.
Agência Estado