Reforma da Previdência retira direitos e reduz benefícios

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Em tempos de pós-verdade, “fake news” e revisionismo, com a negação de fatos e a proliferação de versões sobre praticamente qualquer assunto, a “Reforma da Previdência”, chamada, naquela perspectiva, de “Nova Previdência”, foi objeto de polêmica envolvendo artigo de Thomas Piketty e outros, contestado por Nery e outros, que foi objeto de réplica por Andrei Roman, que foi novamente contestado por Nery e outros, tudo isso nas páginas do “Estado de São Paulo” e do “Valor”.

O artigo de Piketty e outros, publicado pelo Valor em 12/07, essencialmente afirma que a PEC 6/19 tende a aumentar as desigualdades, na medida em que irá reduzir o valor de benefícios previdenciários e quem terá direito a eles. Defende a discussão conjunta das reformas da previdência e tributária. Afirma que trabalhadores pobres não vão conseguir completar os 20 anos mínimos para se aposentar, visto que, atualmente, a maioria dos que se aposentam por idade o fazem com menos de 20 anos de contribuição. Assim, haverá aumento também na desigualdade no acesso à aposentadoria. Apontam, ainda, o risco de que as contribuições socias sejam excluídas do financiamento das aposentadorias, com o fim do financiamento tripartite da aposentadoria, ficando apenas a contribuição sobre a folha salarial como fonte de financiamento da previdência. Defende, assim, que seja mantida a estrutura de financiamento tripartite da previdência na reforma tributária, a sobretaxação dos proventos de valor elevado do servidor público para “combater privilégios” e a taxação de pessoas jurídicas e juros sobre capital próprio, o que poderia elevar substantivamente a arrecadação.

Criticando o artigo e afirmando que está “repleto de erros”, Nery, Tafner e Fraga (Estadão, 13/07) tentam desqualificar a análise apontando “equívocos factuais que beiram o constrangedor”, entre eles o fato de que a soma tempo de contribuição e idade (atualmente em 86 pontos para a mulher e 96 para o homem) não é requisito para a aposentadoria, mas para o cálculo do benefício: quem atinge essa soma, não sofre a redução do “fator previdenciário”, mas, se não a atingir, sim. Alegam que Piketty e outros consideram a aposentadoria por idade como regra “residual” (o que não é verdade, tanto que afirmam que, com a elevação do tempo de contribuição mínimo “na prática, milhões não chegariam a se aposentar”, ou seriam transferidos para a assistência social).

Afirmam também que o caráter “progressivo” da reforma e a “igualação entre pobres e ricos” são ignorados, afirmando que há “erros grosseiros” na descrição do conteúdo da PEC, como a eventual extinção da CSLL e COFINS.

Criticam a alegação de que haveria aumento da contribuição mínima para 20 anos, já que o texto aprovado resultou em manter o mínimo de 15 anos para as mulheres, e mesmo para os homens, que, ademais, continuariam a ter direito ao benefício assistencial devido aos miseráveis no valor de 1 salário mínimo aos 65 anos (que o Governo, inicialmente, pretendia fixar em 70 anos).

Dizia Ésquilo que, na guerra, a primeira vítima é a verdade. Na guerra da desinformação, também é ela quem vai embora primeiro.

E, nesse processo de desinformação, os autores das réplicas a Piketty e Roman “lacram” ainda mais que a “lacração” de Piketty e outros.

Ora, negar que a PEC 6 irá afastar da aposentadoria milhões de brasileiros é um exercício do duplipensar, modo de converter mentiras em “verdades” usado pelo Governo Mundial na obra “1984”, de George Orwell, com farto uso da Novilíngua, linguagem oficial que distorcia o sentido das palavras para inviabilizar o pensamento contrário ao do “regime”.

O que o caráter “progressivo” da PEC faz é, efetivamente, retirar direitos, reduzir benefícios, complicar enormemente o acesso a eles, e isso irá, sem dúvida, afetar os mais pobres, já que os “ricos” continuarão a ter meios para buscar no setor privado outras fontes de renda na velhice, ou se preparar para ela mediante poupança individual.

A CSLL e a COFINS estão em vias de ser extintas pela Reforma Tributária (PEC 45/19) em tramitação na Câmara; o empresariado a redução, ou mesmo o fim da contribuição sobre a folha e encargos patronais. Só esse risco já confirma o receio de Piketty e outros de que o modelo de financiamento tripartite da seguridade – de que faz parte a previdência – seja extinto. Mas, além disso, a PEC 6/19, defendida por Nery e outros, que jamais apontaram seus defeitos, previa que deveria haver “segregação contábil do orçamento da seguridade social nas ações de saúde, previdência e assistência social”, ou seja, as receitas da previdência seriam apenas as a ela estritamente vinculadas. Foi graças à crítica a esse efeito que o Relator mudou o texto para que sejam identificadas em “rubricas contábeis específicas para cada área, as receitas e as despesas vinculadas a ações de saúde, previdência e assistência social”, o que, ainda assim, justifica a preocupação dos autores, pois o propósito subjacente permanece o mesmo: impedir que COFINS e CSLL sejam empregadas para o custeio da previdência. Assim, dissociar as duas reformas é uma total falta de bom senso e um grave risco para a sociedade.

A idade mínima para a aposentadoria, a ser aplicada de imediato para os futuros segurados, de 62 e 65 anos, efetivamente “iguala” pobres e ricos, mas retirando o direito à aposentadoria antecipada de quem trabalhou muito, pois mesmo no RGPS, para ter esse direito, um trabalhador já tinha que ter 30 ou 35 anos de contribuição. Quem começa a trabalhar mais cedo, por exemplo, aos 16 anos, terá que contribuir por até 49 anos para se aposentar. E mesmo para poder receber a média das contribuições de toda a vida serão necessários pelo menos 40 anos de contribuição. As hipóteses de aposentadoria em atividades insalubres serão penalizadas com a mesma regra de cálculo, e mesmo atuando em atividade que exija 20 anos para a aposentadoria, haverá idade mínima e o benefício será de apenas 60% da média.

E, sim, até que lei venha a dispor sobre isso, os novos segurados homens terão que contribuir por 20 anos (art. 19, caput da Redação Final); as mulheres, por 15 anos. Mas a manutenção de 15 anos para as mulheres só ocorreu, mais uma vez, porque o Relator não conseguiu responder à crítica da exclusão que a nova regra produziria. Ainda assim, haverá redução drástica no valor do provento.

Em dezembro de 2017, segundo o Anuário Estatístico da Previdência Social, foram emitidas pelo INSS 4,06 milhões de aposentadorias por idade e 6,02 milhões de aposentadorias por tempo de contribuição, e do total de aposentadorias por idade, 1,39 milhões foram de homens. Desses, se 56,8% o foram com menos  de 20 anos de contribuição, resta o fato de que pelo menos 790.000 homens não poderiam ter recebido seus benefícios por idade, em 2017.

Assim, de fato, se a regra de 20 anos de contribuição já estivesse em vigor, haveria perda de direito para milhões de brasileiros.

Remeter esses segurados para o Benefício de Prestação Continuada (BPC) – que só não foi reduzido para menos que o salário mínimo, ou postergado para os 70 anos por força da crítica recebida – ignora ainda o fato de que, no RGPS, em um casal de idosos aposentados, ambos podem receber seus benefícios; no BPC, a PEC 6/19, ao exigir renda per capita inferior a ¼ do salário mínimo, impedirá esse direito à assistência a ambos, eliminando o direito hoje assegurado pelo Estatuto do Idoso.

A desigualdade, sim, irá aumentar, e a sobretaxação dos servidores públicos ao nível do confisco tributário não é solução válida. Resolver a desigualdade levando todos os trabalhadores a ganhar apenas o salário mínimo parece ser o sonho de alguns economistas. Destruir as garantias individuais da Carta de 1988 parece ser o caminho para isso.

As médias remuneratórias e de proventos atuais entre servidores e segurados do RGPS refletem processos históricos e a Reforma não pode retroagir para anular direitos adquiridos, nem deve ignorar direitos em fase de aquisição. Mesmo assim, desde 2013 os novos servidores já estão igualados aos trabalhadores do setor privado, seguem a mesma regra de cálculo de benefício, estão sujeitos ao teto do INSS, e há, ainda, idades mínimas de 55 e 60 anos. Onde está o privilégio?

A garantia de que os benefícios do RGPS iguais a um salário mínimo não serão afetados ignora o fato de que, exceto se a pensionista não tiver renda formal, a pensão por morte  poderá ser reduzida para apenas R$ 600,00, o que corresponderá a parte dos 14% de ganho fiscal da “Reforma”.

E, com efeito, os dados do impacto fiscal recalculados pelo próprio governo indicam que 81% da redução de despesas virá, sim, do RGPS, do abono salarial e até mesmo do BPC. Os 17% que virão da redução de direitos dos servidores públicos civis – e apenas deles – são bem mais elevados do que o que virá do aumento da taxação dos bancos (apenas 2% do ganho fiscal)… Enquanto isso, os ruralistas foram beneficiados com R$ 85 bi por ano de isenção de contribuições; as empresas continuarão a poder usar prejuízo fiscal ou base de cálculo negativa para quitar contribuições ou compensá-las com outros tributos. Foi suprimida a proibição de tratamento favorecido para contribuintes, por meio da concessão de isenção, da redução de alíquota ou de base de cálculo das contribuições. Nada foi dito sobre a tributação de dividendos.

Por fim, examinar pobreza no Brasil a partir de critérios de renda, nivelando por baixo, e considerando que quem ganha mais de R$ 2.000 está “longe de ser pobre”, é revelador de uma visão de mundo em que a “baixa renda” é apenas estatística. O brasileiro, em geral, trabalha muito, e ganha pouco. Chegar à aposentadoria ganhando mais de R$ 2.000,00 não pode ser razão para justificar uma “Reforma” que irá aumentar expressivamente a pobreza na velhice, a pretexto de que a despesa previdenciária retira recursos de outras políticas públicas que poderiam atender aos mais pobres e às crianças.

Porque o que está em jogo é o interesse de gerar espaço fiscal para pagamento de encargos financeiros, e reduzir a dívida pública, cumprir a Emenda Constitucional 95 e impedir, efetivamente, que o gasto social – seja ele com saúde, educação ou previdência – aumente na proporção das necessidades do povo brasileiro.

Assim, em favor de um debate transparente e esclarecedor, é necessário informar corretamente a população sobre as reais repercussões da PEC 6/09 e, sobretudo, apontar caminhos para a urgente retomada do crescimento econômico, abrindo mão de uma visão estreita e meramente fiscalista.

 

Luiz Alberto dos Santos é advogado, especialista em Políticas Públicas (ENAP), mestre em Administração e Doutor em Ciências Sociais (UnB) e consultor Legislativo do Senado Federal.

 

José Pinto da Mota Filho é advogado, especialista em Previdência (FGV) e ex-consultor Legislativo do Senado Federal.

 

Paulo Kliass é doutor em economia pela Universidade de Paris 10 e especialista em Políticas Públicas e Gestão Governamental.

 

 

 

Fonte: Congresso em Foco