“Não existe regra fiscal perfeita”, diz economista-chefe da Warren Rena

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Especialista em contas públicas afirma que arcabouço é “inteligente”, mas tem limitações: “Não existe regra fiscal perfeita”

As linhas gerais do novo arcabouço fiscal apresentadas pelos ministros da Fazenda, Fernando Haddad, e do Planejamento e Orçamento, Simone Tebet, na última quinta-feira (30), agradaram o mercado por unir as partes positivas de duas âncoras fiscais: a meta de superavit primário e o teto de gastos, na avaliação do economista-chefe da Warren Rena, Felipe Salto. Mas a proposta não garante ao governo zerar o rombo das contas públicas em 2024, como previu o ministro.
O especialista em contas públicas que criticou a modelagem rígida do teto de gastos, quando ele foi aprovado, em 2016, elogiou o novo arcabouço fiscal. Segundo ele, a nova regra fiscal é um “divisor de águas”, contribuindo para o avanço de agendas mais complexas. A seguir, os principais trechos da entrevista ao Correio, concedida na última sexta-feira, um dia após o anúncio do arcabouço.

Avaliação do mercado
Eu acho que, na média, agradou (ao mercado). Houve algumas opiniões mais céticas, sobretudo em relação ao peso que a arrecadação terá na trajetória de resultado primário que o governo está se comprometendo a realizar. No entanto, há uma regra de gasto. Ela tem uma essência importante, que é o controle baseado na trajetória da receita, mas tem também uma banda. O gasto não pode crescer nem menos do que 0,6%, nem mais do que 2,5%, descontada a inflação (em termos reais). Esse conjunto de regras agradou, porque, mesmo que o governo não consiga toda a receita adicional para produzir esse resultado primário positivo, essa trajetória é muito positiva. Mas zerar o deficit, já no ano que vem, acho muito difícil. Mesmo assim, a nova regra já produz uma melhora expressiva na trajetória da dívida. Nós mostramos isso nas simulações que fizemos.

Simulações
A trajetória da dívida pública bruta projetada pela Warren no cenário base mostra que, até 2032, a dívida pública bruta continuará crescendo, chegando a 95,3% do PIB. Mas, quando você coloca a nova regra de gasto — claro, ela tem que ser cumprida e o governo vai ter que fazer esforço fiscal —, mesmo sem considerar aquele volume de receitas extras anunciado pelo ministro, em 2032, a dívida vai estar cerca de 10 a 12 pontos percentuais do PIB menor do que nessa projeção original, no mesmo período, na melhor das hipóteses. Então, isso é um efeito muito expressivo. Você já vê uma luz no fim do túnel no sentido de um horizonte de estabilização, a chamada sustentabilidade da dívida. Mas existe um risco de haver a dificuldade de comportar as despesas que já estão contratadas na regra de gasto que foi proposta, de 70% do crescimento passado da receita líquida. Logo, se a receita líquida não estiver crescendo muito, o gasto também não poderá crescer muito.

Haddad
Fernando Haddad conseguiu marcar um ponto muito importante nesse momento, porque o arcabouço fiscal dá força para que o Ministério da Fazenda consiga avançar, inclusive em outras agendas mais complexas, como a reforma tributária. Então foi muito positivo. Acho que não existe regra fiscal perfeita, nem a regra fiscal sozinha vai resolver os problemas estruturais da economia brasileira, nem das contas públicas.

Prós e contras
O que teve de bom na meta de primário é que ela é ligada à sustentabilidade da dívida, porque considera o lado da receita também. O que tem de ruim do primário é que ela é muito pró-cíclica. Então, eles criaram essa banda de 0,6% a 2,5% (de crescimento real) que ajuda a amenizar esse problema. Já o teto de gastos, o que ele tem de bom é o controle da variável que, como nós economistas dizemos, é a mais exógena. O gasto primário é mais fácil de controlar, ainda que você tenha muita rigidez orçamentária. Então, é bom ter um controle de gastos, até porque o gasto vem crescendo bastante. Só que o problema original do teto de gastos é que ele era muito draconiano e não tinha válvula de escape, não tinha plano B. Esse (novo teto) que eles estão propondo agora, tem. E combinou-se, então, o teto novo com a meta de primário, com vistas a uma trajetória de dívida. Eu acho que é um arcabouço inteligente. Não tem mágica, não vai ter uma lei complementar que, ao ser aprovada, vai levar o Brasil à austeridade fiscal ou à responsabilidade fiscal como um passe de mágica. O que precisa haver é o compromisso político em torno da regra. Mas o primeiro passo foi dado.

Regra de gastos
Primeiro, é importante ter uma regra de gastos. Mas a regra do teto de gastos proposta em 2016 tem uma série de problemas. Ela manda que a despesa cresça pela inflação passada, mas não tem válvulas de escape, a não ser o crédito extraordinário, e não tem um plano B. Quer dizer: quando você descumpre, não existe uma saída. Ou seja, não tem nada além daquela lista de gatilhos, que estava prevista na emenda constitucional 109, mas que não tinha como ser acionada porque o governo não podia mandar o Projeto de Lei Orçamentária Anual com o teto rompido. Agora é diferente, porque eles colocaram, sim, uma regra de gasto. Então, você tem aí a essência do controle da despesa, mas fizeram algo fundamental, que é conferir a flexibilidade necessária à regra. E essa flexibilidade vem justamente da ligação com a receita. Então, quando a receita cresce mais, você pode ter um gasto crescendo mais, até um certo limite. Esse aprimoramento que foi feito, na lógica do controle de gastos, é muito importante.

Controle da despesa
A lógica do controle da despesa continua presente, mas com uma maior flexibilidade. Isso não significa que não vai precisar ter ajuste. Por exemplo, se a receita crescer neste ano, por hipótese, 2% e houver uma inflação de 5%, a taxa nominal será de 7%. Com isso, o gasto no ano que vem só poderá crescer 70% disso, o que daria 4,9% nominal. Tirando uma inflação de 4%, por exemplo, sobram 0,9%. Isso quer dizer que o gasto poderia crescer só 0,9% real no ano que vem, acima do mínimo de 0,6%. Isso é muito pouco, porque o governo deverá ter uma regra nova do salário mínimo, vai ter as pressões já contratadas de reajuste salarial do Legislativo, Executivo e do Judiciário. Então, a regra, apesar da flexibilidade, gera um constrangimento necessário para que o governo faça, também, ajustes.

Por isso, é importante o ministro apresentar as medidas de ajuste. O que ficou claro na apresentação de quinta-feira é que, num primeiro momento, ele vai apostar (no ajuste) mais pelo lado da receita. O próprio ministro Fernando Haddad falou que vai anunciar um pacote de R$ 100 bilhões a R$ 150 bilhões. Esse é o ponto mais frágil, porque é preciso ainda detalhar isso para a gente entender de onde vem esse recurso.

Gastos eficientes
A Constituição de 1988 preconiza, goste-se ou não, de um Estado grande. Então, o que é que nós podemos fazer diante disso? É fazer gastos que sejam eficientes. Esse Estado grande demanda, sim, uma carga tributária elevada e uma dívida que pode até ser grande, mas que tem que ser sustentável. Quando observamos o que está acontecendo com as simulações, mesmo que não venha essa receita adicional que o ministro Haddad pré-anunciou, de algo entre R$ 100 bilhões e R$ 150 bilhões, tem uma trajetória de primário melhor do que a que o mercado projetava na ausência da regra. Isso já é um ganho da nova regra. E a regra também embute um controle de gastos que gera o seu efeito sobre a trajetória da dívida.

Flexibilização
Essa banda que eles criaram, de 0,6% a 2,5%, é importante, porque, se houver uma recessão, por exemplo, a regra dos 70% do crescimento da receita levaria a ter uma queda da despesa, o que não seria razoável e nem possível. Então, foi colocado um mínimo de crescimento (da despesa). E o máximo também é importante, porque, quando a receita cresce muito, não se pode ter o gasto crescendo na mesma proporção. É preciso ter uma trava, porque senão o gasto obrigatório, por exemplo, acaba crescendo demais e se, no ano seguinte, a receita tem um desempenho pior, você não consegue contrair a despesa. Foi o que aconteceu no período pós-boom de commodities.

Descumprimento
Eu acho que tem sempre esse risco de descumprimento. Regras, legislações podem virar letra morta, ou podem ser modificadas. Veja o caso do teto de gastos. Houve uma dúzia de emendas à Constituição que dilapidaram a regra original.

O deficit em 2024
O deficit primário não será zero no ano que vem, a não ser que venha um volume expressivo de receitas. O deficit tende a ficar em torno de R$ 100 bilhões a R$ 110 bilhões, já projetado como resultado dessa nova regra fiscal, pelas contas que eu fiz na quinta-feira (30).

Cumprindo a regra
Num primeiro momento, é preciso tomar medidas que não gerem gastos adicionais. Em 2023 já tem muita coisa contratada: o novo Bolsa-Família, o novo salário mínimo e o piso da enfermagem. Agora, a partir do ano que vem, tem que segurar as pressões adicionais. Esse é o primeiro desafio. O segundo é avançar numa agenda que eu tenho chamado de Agenda Tebet, que é a revisão periódica do gasto, a avaliação de política pública, porque é isso que, a médio prazo, vai permitir reduzir a despesa com consistência.

Contas públicas
As contas públicas não vão voltar a ter superavit em 2024. Se a regra fiscal nova for cumprida, o superavit voltará entre 2026 e 2027. Antes do novo cenário, o primário não voltava ao positivo até 2032.

Sinais na LDO
O maior desafio de qualquer regra fiscal a ser executada é saber cortar despesas. Agora, o que o governo vai fazer para que a despesa cresça menos? Ele precisa começar a responder isso dando indicações que começam na Lei de Diretrizes Orçamentárias (LDO). A LDO vai ser o sinal que o governo poderá dar, por exemplo, do ponto de vista da política de pessoal, da previdenciária e social, para a gente avaliar como a nova regra fiscal desembarca no próprio Orçamento.

Precatórios
Isso é uma equação que eles ainda vão precisar resolver. Na Instituição Fiscal Independente, tínhamos feito uma estimativa que essa fatura poderia chegar a uns R$ 700 bilhões em alguns anos. Eu acho que o problema do precatório deveria ser resolvido de outra maneira: contabilizar o estoque de precatórios como dívida. E aí a despesa do precatório passa a ser financeira e não mais primária.

Cortes
Não será preciso fazer cortes. A regra comporta crescimento contido do gasto com responsabilidade fiscal.

Fonte: Correio Braziliense

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