"FUNDAÇÃO DA LAVA JATO" NÃO FOI PREVISTA EM ACORDO COM EUA

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Ministério Público destina R$ 1,2 bi pagos pela Petrobras para criar uma organização privada de combate à corrupção


Juliana Dal Piva


O depósito judicial de US$ 682,5 milhões (R$ 2,5 bilhões) feito pela Petrobras em uma conta vinculada à 13ª Vara Federal de Curitiba no fim de janeiro deste ano está causando polêmica entre o mundo jurídico que trabalha na área de combate à corrupção. Para não responder a um processo criminal nos Estados Unidos em função da corrupção na empresa, a Petrobras aceitou um acordo no valor de US$ 853,2 milhões (cerca de R$ 3,5 bilhões) com o Departamento de Justiça dos EUA (DoJ) em setembro do ano passado. O Ministério Público Federal (MPF) disse ter sugerido às autoridades americanas que 80% desse montante fosse pago pela empresa no Brasil, o que ficou acordado com o DoJ. A contenda se instalou porque o MPF decidiu que parte do que foi recebido será destinado ao financiamento de uma fundação de direito privado, que será constituída por “integrantes da sociedade civil”. Isso, que não estava no acordo formalizado com as autoridades americanas, já está consumado. O acordo entre MPF e Petrobras para a criação da fundação já foi homologado pelo Judiciário.


“O dinheiro não vai para o MPF. Não vamos gerir isso, não vamos usar o dinheiro”, afirmou a ÉPOCA, o procurador Paulo Roberto Galvão, integrante da força-tarefa da Lava Jato, ao responder às críticas que acusaram o órgão de se “apossar” do valor. “Os acordos têm previsão legal e isso é feito todo dia no país, mas com valores menores”, completou ele, admitindo que a figura da fundação não foi prevista no acordo com os EUA. Quando ela ficar pronta, será gerida por um conselho constituído por esses integrantes da sociedade. Há previsão de uma cadeira ser ocupada pelo MPF.


No documento, firmado pela Petrobras e pelo DoJ há somente a menção ao pagamento de 80% do total da multa no Brasil. Foi o MPF em Curitiba que decidiu a destinação dos R$ 2,5 bilhões. No acordo brasileiro, a empresa se comprometeu a realizar o pagamento numa conta-corrente da Caixa Econômica Federal vinculada à 13ª Vara Federal de Curitiba e os procuradores definiram que 50% do valor — R$ 1,2 bilhão — será destinado ao fundo que será gerido por uma fundação de direito privado que deve desenvolver uma enormidade de projetos na área de combate à corrupção.


De acordo com Galvão, a Petrobras celebrou o acordo com o MPF em Curitiba porque é lá que tramita o caso desde 2014 e, como partiu de lá a investigação do caso, os americanos aceitaram destinar a maior parte da multa para o Brasil, o maior lesado com o crime. A justificativa pela opção pela fundação, porém, é de que os procuradores não sabiam como definir qual setor tinha maior necessidade.


“Nesse caso, como era um valor muito alto, nós entendemos que não tínhamos sequer condições de definir onde esse valor vai ser aplicado, em qual projeto. Essa questão da fundação e do endowment [dotação] foi a melhor maneira que a gente identificou para dar uma destinação a esses valores”, explicou Galvão, ao dizer que a opção pela fundação veio recentemente, pouco depois da celebração do acordo nos EUA.


Para auxiliar a constituição da Fundação, o MPF diz ter solicitado auxílio à Advocacia-Geral da União (AGU), à Controladoria-Geral da União (CGU) e ao Ministério Público do Paraná (MPPR). Um comitê será criado até o fim de abril para dar início aos trabalhos da Fundação e será composto por cinco membros indicados por uma série de organizações como Fundações e Empresas (GIFE), Associação Brasileira de Organizações Não Governamentais (ABONG), Transparência Internacional (TI), Observatório Social do Brasil, Associação Contas Abertas, Instituto Ethos, Amarribo, Movimento de Combate à Corrupção Eleitoral, Instituto Não Aceito Corrupção, Instituto Brasileiro de Governança Corporativa (INGC) e Fundação Dom Cabral (FDC).


Prática internacional


As ideias, porém, não surgiram em Curitiba. O próprio DoJ, nos EUA, tem como prática usual ficar com parte das multas que aplica em casos de corrupção. “As multas de aplicação nos EUA acabam retornando ao próprio órgão aplicador para fortalecer a atividade de investigação”, explicou Bruno Brandão, diretor-executivo da Transparência Internacional. Ele lembrou ainda que a Siemens — empresa também envolta em corrupção na Europa e nos EUA — celebrou há cerca de cinco anos um acordo para a criação de um fundo gerido pelo Banco Mundial, mas que destina sua verba a ações diversas na área de integridade e combate à corrupção.


Mas o que os procuradores veem como inovação está sofrendo diversas críticas. O ministro do Supremo Tribunal Federal, Marco Aurélio Mello, chamou de “Babel” e disse ver uma mistura de público e privado na ação. Um advogado que trabalhou em acordos de leniência com o MPF também afirmou a ÉPOCA ver na iniciativa um “conflito de interesses”, porque os procuradores de algum jeito estariam decidindo sobre multas que poderiam depois ser, de alguma maneira, captadas pelo próprio órgão onde trabalham. “Deveria caber ao executivo gerir as verbas”, disse ele.


Em 2016, a força-tarefa da Lava Jato em Curitiba tentou colocar cláusulas nos acordos de leniência com as empresas para ficar com cerca de 10% das multas aplicadas. A justificativa, na ocasião, era semelhante à ideia do DoJ, de ficar com a verba para investir na infraestrutura do órgão de investigação. O então ministro relator da operação no STF, Teori Zavascki, barrou a medida em uma decisão e a 5ª Câmara de Coordenação e Revisão Criminal do próprio MPF também emitiu parecer contrário. Os procuradores então desistiram de ficar com a verba diretamente. Daí nasceu a ideia da Fundação.


Como ficou estabelecido no acordo com a Petrobras, a Fundação tem prazo de 18 meses para ser constituída e o estatuto deve ser aprovado pela 13ª Vara Federal de Curitiba. A outra metade da multa paga pela Petrobras ficará depositada para eventual ressarcimento de investidores nacionais e poderá ser acrescida ao fundo patrimonial, caso não seja empregada integralmente.


Quando a fundação for constituída, seu trabalho deve, entre tantas coisas, levar em consideração “objetivos apartidários” e reforçar a importância da integridade no setor público e privado. Também estão no papel a criação de programas voltados para comunidades prejudicadas pela corrupção em geral e também aquelas afetadas pela paralisação de obras e projetos da Petrobras associada aos casos desvendados pela operação Lava Jato.


O procurador Paulo Roberto Galvão admite que tudo soa bem genérico, mas diz que é proposital. “A sociedade é que deve definir”, diz ele, embora também admita que a gestão de uma verba pensada originalmente para ser pública terá gestão privada na fundação.


 


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