|2018| Levantamento do O POVO mostra que recursos da aposentadoria superaram os do Fundo de Participação dos Municípios (FPM) em 90% do Estado. Benefício é fundamental para economias locais
O dinheiro que chega todos os meses nas contas bancárias de aposentados cearenses é o mesmo que ajuda a sustentar a economia de vários municípios que dependem do benefício gerido pelo Instituto Nacional do Seguro Social (INSS). Para se ter uma noção da importância dos valores, O POVO fez cruzamento entre as aposentadorias por idade, invalidez e tempo de contribuição e os recursos do Fundo de Participação dos Municípios (FPM) durante o ano de 2018. O levantamento revelou que, em apenas 18 dos 184 municípios cearenses, os repasses do fundo foram maiores que os benefícios previdenciários.
Com isso, é possível afirmar que, em 91% do Ceará, a fatia representada pelas aposentadorias foi superior ao montante que chegou ao Estado pelo FPM. A porcentagem de diferença entre as quantias chega a 396%, como no caso de Crateús, município que encabeça a lista que compara os números das duas transferências. O abismo entre os valores também é característico das cidades que estão na sequência, como Icó (374%), Morada Nova (344%), Canindé (339%), Fortaleza (338%), Campos Sales (335%), Iguatu (324%), Várzea Alegre (321%) e Tauá (319%).
Mas o cenário sofre alteração em cidades que obtiveram uma receita de FPM maior que a de repasses do INSS. É o caso de Ibicuitinga, cidade em que a diferença negativa ficou em -0,68%. A maior distinção foi constatada em Moraújo, município em que a proporção resultou em -86%.
De acordo com Francismar Lucena, gerente executivo do INSS em Fortaleza e Região Metropolitana, é inegável a participação das aposentadorias em atividades econômicas verificadas nas cidades interioranas. “A aposentadoria é quem reina em termos de economia no Interior. Eu digo que 90% dos municípios cearenses são beneficiados com o comércio que funciona a partir da distribuição de renda gerada pelas aposentadorias e que uma parcela significativa é formada por aposentadorias rurais”.
É o caso de Maria Lousinha Alves, 64, residente em Tauá. Graças à aposentadoria rural, ela consegue descansar após anos de trabalho na roça. Ainda criança, a aposentada já ajudava o pai nas plantações da família. Hoje, utiliza o benefício para pagar a conta de luz e comprar alimentos para ela e o marido, também agricultor. Ela estima que cerca de R$ 300,00 do salário mínimo que ganha é usado para comprar remédios que aliviam as dores que se acumularam após anos de trabalho penoso. “É o jeito, gemendo e chorando, tem que pagar. Eu acho pouco, para o tanto que a gente tem que comprar”.
Segundo Lucena, a aplicação de dinheiro de aposentados na economia local é visível na paisagem cotidiana desses municípios. “Quando você analisa, lá pelos dias 16 e 17, já não tem mais movimento no comércio, pois os aposentados já colocaram o benefício para circular no início do mês”, avalia. Chega a ser um evento social. Em Independência, Gorete Coutinho, 45, faz questão de acompanhar a mãe, Expedita Costa, 97, durante a ida ao banco para receber o benefício. “Lá ela vê as amigas, os parentes. No comércio, ela já é conhecida por gostar de comprar o que é bom. Outros idosos como ela têm a mesma rotina. Retiram o dinheiro e compram carne, remédios, tudo o que precisam para dentro de casa”.
A movimentação econômica percebida por Lucena também é confirmada por quem trabalha diretamente com a questão previdenciária. Especialista na área, a advogada Alice Aragão confirma que o fluxo monetário gerado pelos cifrões do benefício também é realidade em outros Estados do Nordeste onde a profissional atua. De acordo com ela, também é possível perceber essa ebulição econômica no Maranhão e no Piauí. Ao trabalhador rural, ela acrescenta, entre os segurados, a fatia composta por pescadores. “Aqui no Ceará, especificamente, não temos só quem trabalha com a agricultura. Tem também a pesca. Em boa parte dos municípios, quando analisamos as pessoas com mais de 70 anos, no caso, um trabalhador rural ou um pescador, a renda deles é a aposentadoria”.
Segundo José Irineu de Carvalho, consultor econômico e financeiro da Associação dos Municípios do Estado do Ceará (Aprece), esse movimento resulta das características econômicas e sociais das cidades do Interior. “Quando você não tem um número de empregados elevado no setor privado ou mesmo no serviço público, como acontece na Capital, quanto mais predominar a população rural em relação à urbana, maior será o impacto das aposentadorias na circulação de riquezas dos municípios”.
A ausência de atividades industriais significativas e de um setor de serviços robusto também são apontados pelo especialista como caracterizadores de um cenário de dependência das aposentadorias para a movimentação econômica. Ele ainda reforça que esse movimento tem picos nas datas de pagamento dos benefícios nessas cidades.
Dependência econômica de aposentadorias deve ser questionada
A dependência econômica causada pelo acúmulo de aposentadorias nos municípios do Interior é vista de uma forma preocupante pelos especialistas ouvidos por O POVO. Uma vez que o recebimento do benefício se encerra com o falecimento dos aposentados e a inserção de aportes monetários na economia local não acontece em grandes volumes, o futuro econômico desses locais deveria estar alicerçado em bases mais sólidas e duradouras.
“Essa dependência econômica é extremamente complicada, mesmo que auxilie a movimentação da economia do município. Isso é bom, mas também é ruim para o município que praticamente vive disso”, afirma Alessandra Araújo, professora dos cursos de finanças e ciências econômicas da Universidade Federal do Ceará (UFC) campus Sobral.
A pesquisadora destaca que os municípios precisam gerar recursos próprios, uma vez que o consumo que depende da Previdência “não tem retorno” e não se apresenta como sustentável com o passar dos anos.
Opinião semelhante tem o analista de políticas públicas do Instituto de Pesquisa e Estratégia Econômica do Ceará (Ipece) Paulo Pontes. Ele destaca que a aposentadoria é um benefício vulnerável para sustentar a economia de um município. “Trata-se de efeito muito específico, pois afeta só o consumo, não tem um investimento para a capacidade produtiva. É um dinheiro que não ajuda a desenvolver a região, tem muito mais uma função de assistência social”. (NP)
Entenda
O que são as aposentadorias rurais?
De acordo com as regras previdenciárias em vigor, são benefícios pagos aos cidadãos que comprovam o mínimo de 180 meses trabalhados na atividade rural, além da idade mínima de 60 anos, se homem, ou 55 anos, se mulher (Fonte: Portal do INSS).
O que é o Fundo de Participação dos Municípios (FPM)?
O FPM é um repasse da União aos municípios previsto no artigo 159 da Constituição Federal (CF). O FPM é constituído de 22,5% da arrecadação líquida do Imposto sobre a Renda e Proventos de Qualquer Natureza (IR) e do Imposto sobre Produtos Industrializados (IPI). A distribuição dos recursos aos municípios é feita de acordo com o número de habitantes. São fixadas faixas populacionais, cabendo a cada uma delas um coeficiente individual. Do total de recursos, 10% são destinados às capitais, 86,4% para os demais municípios e os 3,6% restantes vão para um fundo de reserva que beneficia os municípios com população superior a 142.633 habitantes, excluídas as capitais (Fonte: Portal da Transparência).
As mudanças que a reforma pode causar
A proposta de reforma da Previdência em discussão na Comissão de Constituição e Justiça (CCJ) da Câmara dos Deputados prevê mudanças significativas na obtenção das aposentadorias rurais. Caso o texto enviado pelo Executivo seja aprovado, agricultores de ambos os sexos só conseguiriam se aposentar nesse modelo – que serve de base econômica para muitos municípios cearenses – apenas quando alcançassem os 60 anos de idade.
Na prática, a mudança pesa mais para as mulheres, que teriam que trabalhar cinco anos a mais para ter direito ao benefício, uma vez que a legislação atual exige que a agricultora tenha 55 anos na época da solicitação. Outra mudança significativa incide sobre o tempo de atividade. Atualmente, são exigidos 15 anos de trabalho rural comprovados. A proposta altera essa regra para um período de contribuição de 20 anos, nos quais esses trabalhadores passariam a contribuir com uma alíquota de 1,7% sobre o valor de venda da produção agrícola.
Segundo Paulo Pontes, analista de políticas públicas do Instituto de Pesquisa e Estratégia Econômica do Ceará (Ipece), as propostas, caso aprovadas, alterariam a rotina econômica dos municípios cearenses a longo prazo, dependendo da quantidade de pessoas às vésperas de uma aposentadoria na época. “Quem já está aposentado não vai ser afetado. Aquelas pessoas que estão recebendo vão receber do mesmo jeito. Agora, se você estava esperando pela aposentadoria de 200 pessoas que vão ter que adiar esse projeto caso as idades mínimas mudem, terá uma diminuição no fluxo de renda esperado para o município”.
A advogada Alice Aragão, porém, prevê uma mudança com impacto mais imediato. Ela pontua que a aposentadoria rural chega em um momento de cansaço que decorre da idade avançada desses trabalhadores, os quais estão na árdua lida do campo há muitos anos e, em certos casos, acumulando problemas de saúde decorrentes das condições de trabalho campesinas. Sabendo que o descanso prometido pelo benefício previdenciário pode ser retardado, essas pessoas poderiam dar início a fluxos migratórios inesperados até então.
“Com a reforma, o governo quer protelar mais o tempo de atividade remunerada. Com isso, a estabilidade, com a certeza dos valores recebidos, não vai se concretizar. Aumentando o tempo de trabalho no campo, trabalhadores rurais ou pescadores irão procurar oportunidades na zona urbana”.
A especialista em direito previdenciário também chama atenção para outra mudança que pode ocorrer e que está diretamente relacionada ao Benefício de Prestação Continuada (BPC), também muito comum nos municípios cearenses. Trata-se de um salário mínimo mensal pago à pessoa com deficiência ou ao idoso com 65 anos ou mais que comprove a inexistência de provimentos para manutenção própria.
A proposta em análise na Câmara, apesar de antecipar o pagamento para 60 anos, reduz o valor pago para R$ 400,00 até os 70 anos de idade, quando o beneficiado passaria a receber um salário mínimo. “Isso também vai impactar na economia, porque aquele com mais de 65 anos que receberia o benefício assistencial estaria gastando o valor no município dele. Se a nova regra for aprovada, ele não vai gerar o lucro que geraria naquele município”, analisa.
Já Francismar Lucena, gerente executivo do INSS de Fortaleza e Região Metropolitana, analisa as possíveis mudanças com mais cautela. “Se por acaso a mudança vier, vai acontecer um retardamento de três, quatro anos na obtenção do benefício, só isso”.
Ele lembra que há rotatividade de aposentadorias nesses municípios e que o BPC também impacta na economia local, ainda que seu recebimento seja retardado com as mudanças que podem acontecer. “A proposta do governo fornece amparo social que passaria a ser de R$ 400,00, chegando ao salário mínimo aos 70 anos”, pondera.
Regras
As atuais regras previdenciárias prevêem que as aposentadorias rurais sejam pagas aos cidadãos que comprovarem, no mínimo, 180 meses trabalhados na atividade rural, além da idade mínima de 60 anos caso seja homem ou 55 anos caso mulher.
O bom exemplo do Eusébio
Em meio aos municípios que tiveram valores de FPM maiores que os da aposentadoria, Eusébio se destaca como uma das cidades que busca se manter economicamente ativa de diferentes modos. De acordo com a assessoria de imprensa da prefeitura do município, os distritos de Jabuti, Autódromo e Amador reúnem 150 grandes empresas, dentre elas, a francesa Schneider Electric, especializada em produtos e serviços para distribuição elétrica, controle e automação, e a Eletra Energy, surgida de uma joint venture formada por uma empresa cearense e o Grupo Hexing, de origem asiática.
“Com isso, a arrecadação do município cresce, reduzindo a dependência das aposentadorias e pensões, como ocorre em outros municípios”, afirma Acilon Gonçalves, prefeito de Eusébio. De acordo com ele, a Secretaria de Desenvolvimento Econômico do município possui um programa de captação de novos negócios que tem conseguido manter o crescimento do investimento na cidade. Como destaques, ainda, o Polo Tecnológico de Saúde, com a Fiocruz e a Fábrica de Vacinas da Biomanguinhos, em construção.
Mas o comércio local ainda se mantém forte, principalmente em bairros distantes do Centro e de rodovias como a CE-040 e a BR-116. O Imposto Sobre Serviços (ISS) é considerado a segunda maior arrecadação do município. A rede de serviços foi impulsionada, principalmente, pela grande migração de moradores de classe média para a cidade nos últimos anos. Vindos em sua maioria de Fortaleza, esses novos habitantes originaram demandas que culminaram com a instalação de vários empreendimentos, como restaurantes e shoppings.
Boa exceção
Em Eusébio, as principais fontes de recursos vêm das Transferências Correntes (oriundas de repasses do Estado e da União) que correspondem a aproximadamente 65% da receita municipal. A Receita Tributária Própria, advinda da arrecadação dos impostos municipais, também tem importância com participação aproximada de 27% na receita total, com destaque para o Imposto sobre Serviços (ISS) e o Imposto Sobre a Transmissão de Bens Imóveis (ITBI), além de 8% de outras receitas patrimoniais.
Números
23.860 aposentadorias rurais foram concedidas no Ceará em 2018. O número representa mais da metade do total de benefícios transferidos durante o período, que foi de 42.802
R$ 29.093.614,58 foi o total de repasses mensais de aposentadorias rurais no Ceará em 2018