Opinião: Só nova Constituinte deve fazer reforma tributária, escreve Eduardo Cunha

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Assisto à discussão de uma nunca consumada reforma tributária no nosso país desde meu 1º mandato de deputado federal em 2003. Participei de vários grupos de discussão sobre isso. Nunca houve qualquer desfecho que não fosse o atendimento de necessidades prementes de arrecadação do governo de plantão.

Em 2003, o governo do PT tinha como principal objetivo a prorrogação da CPMF –que acabou enfim prorrogada. Todas as discussões sobre a reforma tributária foram arquivadas sem votação, exceto pela apreciação dessa prorrogação, disfarçada no meio de tantas demandas debatidas.

Agora assistimos a essa discussão colocada no atual governo. Na realidade, existem duas formas de se entender o que está ocorrendo:

  • primeira, de grupos que querem manter os seus privilégios ou obter novos, disfarçados de mudança do sistema tributário com vistas à suposta melhora do ambiente econômico;
  • segunda, daqueles que querem diminuir a carga tributária e o custo da máquina necessária ao atendimento das exigências fiscais, visando a diminuir o volume de taxas para os pagadores de impostos. Essa parece ser a disposição do atual governo.

Os grupos que defendem a 1ª opção são aqueles que fizeram uma proposta de criação de uma contribuição única, que puniria diversos setores, não diminuiria a carga tributária e nem melhoraria o ambiente da economia, salvo para aqueles que fossem contemplados em seus benefícios.

Isso sem contar que essa proposta provoca ganhos e perdas entre os entes federativos –que falam em criar um fundo às custas da União para compensar as suas supostas perdas. Engraçado: os Estados que poderiam ganhar não concordavam em compensar os que iam perder. Ou seja, a lógica seria que quem ganhar fica com o lucro e quem perder põe o prejuízo na conta da chamada “viúva”, a União.

É lógico que isso não poderia prosperar.

Já assistimos aos problemas decorrentes da Lei Kandir, que jogava nas costas da União as perdas de impostos com as exportações, que tanta polêmica já causou. Não precisamos de uma nova Lei Kandir. Esse modelo está fracassado. Falar de um fundo presumido de R$ 500 bilhões a ser pago pela União é um verdadeiro acinte aos pagadores de impostos.

Durante muitos anos, assistimos à discussão de que a principal reforma deveria ser a do ICMS, imposto estadual. Cada Estado tem uma regulamentação própria dele, criando os próprios benefícios fiscais e produzindo insegurança na economia.

São sempre os Estados, principalmente os que concedem incentivos fiscais, que resistiam a essas mudanças –que deveriam ser a unificação das legislações, o estabelecimento de alíquotas únicas, o fim da guerra fiscal e outras necessidades, como a mudança da cobrança da origem para o destino do imposto.

TAXAÇÃO SOBRE DIVIDENDOS

Na campanha presidencial de 2018, houve muito debate sobre a introdução de tributação sobre os dividendos. Praticamente todos os candidatos declararam, à época, que iriam propor isso caso fossem eleitos, inclusive para aumentar a arrecadação, o que supostamente bancaria as propostas inexequíveis debatidas.

Eu, particularmente, não sou favorável à tributação dos dividendos. Acho que desestimula o investimento –assim como o fim dos juros sobre o capital próprio, que na prática substitui o endividamento das empresas. Mas reconheço que as duas ideias estão bem consolidadas e devem acabar sendo implementadas. Aliás, o PT tentou introduzir as duas mudanças quando relatou uma Medida Provisória em 2020. Não conseguiu por falta de apoio no Congresso.

Evidentemente, não acredito que se obtenha a arrecadação estimada. Os chamados “planejamentos fiscais” (fórmulas legais encontradas pelas empresas para pagar menos impostos) que serão adotados. Haverá uma possível redução do capital investido nas empresas. Tudo reduzirá a massa a ser tributada.

O governo atual enviou um projeto ao Congresso propondo a tributação dos dividendos e o fim dos juros sobre o capital próprio, com a ideia de que essa nova arrecadação compense a redução das alíquotas de Imposto de Renda das empresas, além da correção de parte da tabela do IR das pessoas físicas.

Por óbvio, busca-se o efeito neutro ou de redução da carga tributária do país. E, por óbvio, a redução de carga tributária implica em redução de arrecadação.

A arrecadação federal vem tendo aumento real: registra crescimento acima da soma da inflação e do crescimento econômico. Isso dá uma margem de manobra ao governo federal, que pode perder uma parte da sua arrecadação para diminuir a enorme carga tributária ainda existente no nosso país.

ESTADOS: DISTRIBUIÇÃO DESIGUAL

Se a arrecadação federal vem aumentando, é óbvio que também a arrecadação de Estados e municípios deve estar aumentando. O componente de distribuição pela União –via FPE (Fundo de Participação dos Estados) e FPM (Fundo de Participação dos Municípios)– é composto do compartilhamento de cerca da metade do Imposto de Renda e do IPI (Imposto sobre Produtos Industrializados) arrecadados pela União.

Não existe a possibilidade de arrecadação federal subir e a dos Estados e municípios cair ou mesmo se mantem, principalmente nos Estados que recebem maiores parcelas do FPE. Aliás, a distribuição desse fundo deveria ser objeto de debate; diferentemente do FPM, cujo critério de distribuição é o tamanho da população, o FPE tem um critério político, no qual o tamanho da população é desprezado, por contemplar mais os Estados considerados mais pobres.

Nessa lógica, acabam desfavorecidos outros Estados que têm um índice de pobreza bastante relevante –que, em função do tamanho das respectivas populações, abrigam grande parcela da população pobre.

Existe o critério de tentar equilibrar as desigualdades, mas a divisão desse bolo perdeu o sentido: a lógica foi o poder político dos defensores da regra existente.

O critério de distribuição do FPE deveria ser o mesmo do FPM: proporcional à população. É critério mais justo em qualquer análise.

Também não podemos esquecer de que dentre os Estados que mais recebem participação de FPE estão os beneficiados com os bilionários precatórios, oriundos de disputas judiciais por maiores repasses da União na distribuição do Fundo de Educação. Discute-se, inclusive, o parcelamento desses precatórios para evitar o estouro do teto de gastos.

Independentemente de qualquer discussão, a sociedade jamais deveria aceitar que a redução de impostos trave no Congresso com o argumento de que Estados e municípios vão perder arrecadação, nas suas cotas de participação de FPE e FPM.

Por essa lógica, deveríamos aumentar ainda mais os impostos, para que esses entes federativos possam arrecadar ainda mais para bancar seus gastos exorbitantes de uma máquina pública ineficiente, cara e defensora de muitos privilégios?

Por que, em vez disso, não se termina com os incentivos fiscais que diminuem a arrecadação deles?

Seria muito bom que a mídia apresentasse de forma clara que o país não reduz a sua carga tributária para que continue a sustentar essa máquina. Se é que isso irá realmente ocorrer –pois, como já explanei acima, se a arrecadação federal subiu, a arrecadação de Estados e municípios também subiu.

Imaginem só: você mora em um prédio, querem reduzir a taxa de condomínio e alguém fica contra pois vai diminuir a arrecadação. Não seria melhor verificar se o dinheiro está sendo bem gasto? Se os serviços estão compatíveis com o montante desses gastos?

O DEBATE DO ICMS

Outro debate que vem onerando ainda mais o pagador de impostos trata do aumento do preço dos combustíveis. A cada alta, os Estados também arrecadam mais ao cobrar a parte que lhes cabe dos valores de ICMS. Dessa forma, resistem a diminuir o percentual de ICMS aplicado com o falso argumento de que não podem perder arrecadação.

Ora, se não tivesse tido aumento dos combustíveis, haveria perda de arrecadação? Por qual razão não se mantêm constantes os valores que se pretende arrecadar de ICMS, independentemente de aumento ou até de redução dos preços praticados?

O que acontece é que os Estados estão se aproveitando da variação constante dos preços para arrecadarem mais. Isso em cima dos cidadãos que pagam o preço do combustível nas bombas.

O critério de cobrança do ICMS é o de um percentual, variável em cada Estado, sobre o preço desses combustíveis. Ocorre que se poderia simplesmente ter um preço base que valesse pelo ano inteiro, independentemente da variação dos preços dos combustíveis.

Além de ser mais sensato, isso até protegeria a arrecadação dos Estados, já que a base da cobrança do imposto ficaria sem alterações por ao menos um ano. Isso também afeta os municípios, que ficam com 25% da arrecadação do ICMS pelos Estados.

O mesmo princípio vale para a cobrança do ICMS da conta de energia. A simples alteração da bandeira tarifária não deveria resultar em aumento desse imposto, como está ocorrendo.

Trata-se de um verdadeiro caso de enriquecimento sem causa –às custas do pagador de impostos, que, além de arcar com o aumento do preço dos combustíveis e da energia, ainda tem de sustentar a ganância dos Estados.

A mídia, por sua vez, atribui todo questionamento feito pelo governo sobre a participação dos Estados nessa cobrança como uma disputa política de Bolsonaro contra os governadores. Não contesta a verdadeira situação provocada por essa forma de aproveitamento pelos Estados desse aumento de cobrança de valores de ICMS.

A má vontade com o governo prepondera sobre uma situação em que a ânsia arrecadatória dos governos estaduais prejudica todos os brasileiros.

DESONERAÇÃO DA FOLHA DEVIA SER IGUALITÁRIA

No governo do PT, surgiu uma ideia que parecia bem positiva para a economia: a desoneração da folha de pagamentos das empresas. Decidiu-se substituir a cobrança de contribuições previdenciárias sobre a folha de salários por um percentual sobre o faturamento das empresas.

A grande virtude dessa ideia era o estímulo à manutenção do emprego. A contribuição sobre o faturamento não implicaria em custo direto sobre a mão-de-obra.

O grande defeito foi a politicagem e o atendimento de interesses de setores específicos. Isso resultou na manutenção de alíquotas diferentes para cada setor, sem razão técnica e sem qualquer obrigação de manutenção dos empregos.

Com isso, a ideia transformou-se apenas numa grande perda de arrecadação e na concessão de enormes privilégios por razões políticas ou até mesmo de outra natureza. Perdeu-se no tempo.

Para que a ideia fosse levada adiante de forma correta, o certo seria aplicar uma alíquota igual para todos os setores. O critério para definir esse percentual teria de ser o seguinte: o valor arrecadado com a contribuição previdenciária teria de ser mantido no patamar, aplicando-se um percentual sobre o faturamento que resultasse em arrecadação idêntica.

Não foi isso o que aconteceu e continua a acontecer. Alguns setores –liderados pelo mais barulhento beneficiário, o setor de mídia– patrocinam uma campanha para prorrogar a cada ano o seu benefício.

Para resumir: os meios de comunicação, liderados obviamente pelo Grupo Globo, já começaram a campanha para prorrogar esse privilégio por mais 5 anos. Isso é reforma tributária?

Eu, como disse acima, acho a ideia muito boa. Mas não aplicada dessa forma, beneficiando apenas alguns.

Vamos de novo assistir ao triste espetáculo: basta um congressista defender essa prorrogação do benefício da mídia, disfarçado entre alguns outros setores, para ter espaço diário no Jornal Nacional, fingindo defender uma tese que protege a manutenção do emprego.

É pura hipocrisia. Por óbvio, essa pauta irá prosperar e de novo teremos a manutenção desse benefício, com perda de arrecadação da União, para fazer frente a uma despesa previdenciária em crescimento.

Se tivermos que manter esse privilégio, que seja para todos e de forma equânime, não somente para poucos, incluindo os gigantes da mídia.

ISENÇÕES E INJUSTIÇAS

Independentemente do conteúdo das propostas em debate da chamada reforma tributária, todos deveriam festejar qualquer proposta que reduzisse a nossa carga tributária.

Tenho divergências conceituais sobre o impacto das propostas debatidas. Eu preferiria diminuir efetivamente o Imposto de Renda das pessoas físicas, pois isso provocaria um maior incremento da economia, com aumento de renda líquida, do consumo e da poupança dos cidadãos pagadores de impostos.

A ideia de reduzir o imposto de renda das empresas, sem que isso seja vinculado à obrigação de reinvestimento da parcela de imposto reduzido, não terá qualquer efeito na economia além de dar mais lucro para os acionistas, aumentando ainda mais a concentração da renda e a distorção das classes sociais.

É óbvio que essa proposta do governo veio em contrapartida à tributação dos dividendos. Por um lado, retira-se parte dos lucros obtidos pela nova tributação; por outro, busca-se aumentar a base a ser distribuída aos acionistas diminuindo o imposto de renda das empresas.

Ou seja: a proposta não serve para incentivar a economia do país, mas tão somente para criar mecanismos compensatórios ao novo tributo criado sobre a distribuição dos dividendos.

E há também o risco de se estabelecer uma nova injustiça fiscal. O presidente da Câmara, Arthur Lira, alertou em evento da XP na semana passada que profissionais disfarçados de pessoas jurídicas que recebem até R$ 400 mil mensais seriam beneficiados pela isenção, enquanto trabalhadores que ganham menos de R$ 6.000 ficariam com uma alíquota de 27,5% de imposto de renda. Ele está absolutamente certo.

Uma medida que busca tributar dividendos não pode acabar isentando quem deveria pagar o imposto. São profissionais prestadores de serviços que se protegem debaixo de uma pessoa jurídica para não pagarem o seu imposto de renda como qualquer trabalhador assalariado.

Ao contrário disso, independentemente ou não da aprovação da tributação dos dividendos, eles, sim, deveriam ser obrigados a pagar imposto. Para isso a solução é bem simples: basta classificar direito a caracterização de dividendo como remuneração do capital e não remuneração de trabalho.

QUESTÃO MERECE UMA CONSTITUINTE

O sistema tributário atual é extremamente injusto. Necessita realmente de uma profunda reformulação. Mas não por meio de pequenas propostas.

Pelas experiências anteriores, somente uma nova Constituinte, mesmo que específica para essa finalidade, poderia realmente modificar o sistema como um todo.

O tripé que envolve União, Estados e municípios, a participação do pagador de impostos e a necessidade de financiamento da máquina pública não conseguirão manter um equilíbrio com propostas individuais que na verdade buscam apenas balizar a arrecadação dos entes federativos.

Até porque essa discussão passa pela máquina pública que queremos financiar e pelos serviços que desejamos que sejam prestados à sociedade, de acordo com a competência da União, dos Estados e dos municípios.

O tamanho do Estado e seu custo devem ser debatidos. Assim poderemos redefinir que tipo de Estado queremos e o quanto de impostos aceitamos pagar para financiá-lo.

Não dá para simplesmente querer rediscutir o sistema tributário sem decidir as obrigações que aceitamos pagar e se atendem às nossas exigências como sociedade.

Ou será que todos concordam com o tamanho de todas as despesas dos entes federativos no nosso país?

Será que todos se esquecem de que, quando há corporações beneficiadas, aumento de despesas previdenciárias, desperdícios com má gestão, quem paga a conta é o cidadão?

Não podemos nos esquecer de que parte dessas distorções foi criada a partir da Constituição de 1988. O momento daquele debate foi bastante favorável para a defesa de interesses corporativos e pelo excesso de obrigações atribuídas aos entes federativos, sem que o seu respectivo financiamento estivesse bem delimitado.

As contribuições constitucionais, sem compartilhamento com Estados e municípios, foram criadas depois da promulgação daquela Constituição para salvar a União das perdas estabelecidas naquele momento. Ali já começaram as distorções do sistema tributário que entrou em vigor.

O resumo da situação é que estamos, nesse momento, debaixo de uma discussão menor, que não atenderá a nenhum dos nossos anseios. Sequer servirá para estimular a nossa economia.

Mas também não podemos simplesmente atirar pedras, criticando e impedindo a aprovação de qualquer mecanismo que reduza a nossa aviltante carga tributária, ainda mais debaixo da desculpa esfarrapada de que Estados e municípios vão perder arrecadação. Esse argumento é simplesmente vergonhoso. É preciso efetivamente reduzir o que pudermos de qualquer imposto ou contribuição, não importa a quem pertença.

Ninguém gosta de pagar imposto. Por isso até o nome deriva de imposição. Se imposto fosse bom, o seu nome seria qualquer outro, menos imposto.

Se fosse facultativo, poucos pagariam e dessa forma não haveria tantos interesses sendo defendidos.

Que ele continue “imposto”, mas que seja justo e no menor tamanho possível. Para que possamos ter de ceder apenas os ovos e não nos obrigue a entregar as galinhas, acabando de vez com a produção dos ovos.

*Eduardo Cunha Eduardo Cosentino da Cunha, 62 anos, é economista e ex-deputado federal. Foi presidente da Câmara em 2015-16, quando esteve filiado ao MDB. Ficou preso preventivamente pela Lava Jato de 2016 a 2021. Em abril de 2021, sua prisão foi revogada pelo Tribunal Regional Federal da 4ª Região. É autor do livro “Tchau, querida, o diário do impeachment”. Escreve para o Poder360 às segundas-feiras a cada 15 dias.

Fonte: Poder360

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