OPINIÃO | Vitória de Biden abre caminho para tributação global das empresas

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Que o resultado marque a compreensão de que as décadas de políticas fiscais favoráveis aos ricos levaram à desigualdade

Você pode apostar com segurança que as eleições presidenciais americanas de 2020 serão lembradas por um longo tempo. Não apenas porque levou dias para se descobrir o resultado e porque, pela primeira vez, uma mulher, Kamala Harris, foi eleita vice presidente. Mas também porque, desafiando todos aqueles que argumentaram que esta promessa era a melhor maneira de perder, Joe Biden se comprometeu a aumentar os impostos sobre as empresas e os 1% mais ricos da população desde o início de seu mandato. E ele ganhou.

Esperamos que esta vitória marque a compreensão por muitos americanos de que as décadas de políticas fiscais favoráveis aos ricos e poderosos levaram a desigualdade de riqueza a seus níveis mais altos desde os anos 60, quando ela começou a ser calculada nos Estados Unidos. Como mostraram os economistas Emmanuel Saez e Gabriel Zucman, os bilionários estão agora sujeitos a uma taxa de imposto efetiva mais baixa do que a classe trabalhadora.

Esta não é uma peculiaridade americana. Nas últimas décadas, governos de todo o mundo organizaram seus sistemas tributários para beneficiar os mais ricos e as multinacionais. Assim, estes últimos podem legalmente declarar seus lucros em paraísos fiscais para desvalorizar aqueles obtidos em países onde os impostos são elevados, mesmo que seja lá que concentrem suas atividades. Da mesma forma, os bilionários se aproveitam da falta de transparência para esconder ativos não declarados e renda no exterior.

E vamos dissipar este mito: o abuso dos impostos pelos mais ricos não é marginal, nem é um mal necessário para manter a economia mundial funcionando. A cada ano, o mundo perde mais de 362 bilhões de euros devido a abusos fiscais internacionais, como revela um novo estudo, “O Estado da Justiça fiscal 2020“, publicado pela Tax Justice Network, Public Services International e a Global Tax Justice Alliance. Embora a pandemia já tenha matado mais de 1,3 milhões de pessoas no mundo todo, o relatório afirma que os paraísos fiscais absorvem 9,2% do orçamento da saúde de todos os países do mundo, o equivalente aos salários anuais de 34 milhões de enfermeiros. No Brasil, esta perda fiscal corresponde a 20,06 % do orçamento de saúde, o que pagaria o salário de mais de dois milhões de enfermeiros. Um escândalo, considerando a falta de pessoal médico e sua exaustão.

A crise sanitária lembrou a todos os governos, inclusive os conservadores, o quanto os serviços públicos são essenciais. Eles precisam investir mais em saúde, escolas e infraestrutura, bem como em apoio às empresas, especialmente as menores. E como a conta terá que ser paga, precisamos urgentemente alcançar aqueles que estão se beneficiando do sistema sem contribuir para ele.

Um dos primeiros passos deve ser a introdução de impostos progressivos sobre os serviços digitais das empresas multinacionais. Ironicamente, os gigantes digitais são de fato os grandes vencedores da crise de saúde, beneficiando-se do fato de que não precisam de interação pessoal com seus clientes. Além disso, os governos deveriam aplicar impostos corporativos mais altos às empresas em situação de monopólio ou oligopólio, especialmente aquelas que se beneficiam da crise, como as do setor farmacêutico.

Acima de tudo, não devemos sucumbir às sirenes dos cortes fiscais que as grandes empresas já estão pedindo, alegando que eles são indispensáveis para a recuperação. Já sabemos que, em tempos normais, não são os impostos que levam uma empresa a investir em um país, mas a qualidade da infraestrutura e do trabalho, o acesso ao mercado ou a estabilidade política. Além disso, quando os projetos de expansão são limitados pela incerteza e pelo excesso de capacidade comercial, não são os cortes fiscais que estimularão o investimento privado.

Finalmente, é imperativo introduzir uma taxa mínima efetiva de imposto corporativo de pelo menos 25%, como defendido pela Comissão Independente de Reforma Tributária Internacional (ICRICT). Qualquer empresa multinacional que contabilize seus lucros em um paraíso fiscal seria, portanto, tributada em seu país de origem a esta taxa mínima. Isto reduziria seu interesse em transferir seus lucros para paraísos fiscais.

A pressão das últimas semanas para estabelecer esta taxa mínima global em 12,5% perdeu toda a justificativa. De fato, isso incentivaria os países com impostos mais altos a embarcar numa corrida para baixo, reduzindo assim seus recursos. Embora a administração Biden esteja defendendo um aumento do imposto corporativo americano para 28% e uma taxa efetiva mínima global de 21%, cabe agora à União Europeia estabelecer um patamar alto . Como estes dois mercados são inevitáveis, nenhuma empresa multinacional poderia boicotá-los para evitar este nível de tributação. A taxa de 25% pode, portanto, ser fixada globalmente, fornecendo aos Estados recursos suficientes para reconstruir não somente sociedades e economias mais prósperas e resilientes, mas também mais justas.

Fonte: Carta Capital

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