OPINIÃO | Por uma reforma tributária avançada para alcançar a economia digital

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Uma reforma do sistema tributário brasileiro é uma necessidade inquestionável para restabelecer uma estabilização nas relações entre o Fisco e o contribuinte, implantando um sistema harmonizado e um grau de simplicidade a não dificultar o cumprimento das obrigações tributárias de quem as deve cumprir, com o propósito de alcançar uma maior segurança jurídica.

De fato, o nosso sistema tributário é injusto e anacrônico, extremamente complexo e instável, com uma proliferação normativa exacerbada, em especial com relação às infindáveis normas infralegais (instruções normativas, solução de consultas, portarias…), normas estas que atormentam o contribuinte pelo seu volume e, por vezes, pelo seu viés parcial na interpretação das leis que lhes dão fundamentação legal.

Conforme é do conhecimento de todos, tramitam no Congresso Nacional três projetos reformistas encartados na PEC nº 45 (Câmara dos Deputados) e na PEC nº 110 (Senado Federal), além do Projeto de Lei nº 3.887/20, de iniciativa do governo federal, assinado pelo ministro da Economia, Paulo Guedes.

A PEC 45 propõe a extinção de cinco tributos, IPI (Imposto sobre Produtos Industrializados), PIS (Programa de Integração Social), Cofins (Contribuição para o Financiamento da Seguridade Social), ICMS (Imposto sobre Operações de Circulação de Mercadorias e de Prestação de Serviços de transporte interestadual e intermunicipal e de comunicação) e ISS (Imposto Sobre Serviços), e institui o IBS (imposto sobre bens e serviços), em substituição a todos os tributos extintos.

Já a PEC 110 pretende eliminar nove tributos e criar dois novos em substituição.

Os tributos extintos seriam os seguintes: o IPI, o PIS, a Cofins, o ICMS, o ISS, o IOF (Imposto sobre Operações Financeiras), o Pasep (Programa de Formação do Patrimônio do Servidor Público), a Cide-Combustíveis e o Salário-Educação.

Em substituição a estes tributos a proposta cria também o IBS, nos mesmos moldes da PEC 45, mais o IS, um Imposto Seletivo, de competência federal, que incidiria sobre bens e serviços específicos, como bebidas alcoólicas, petróleo e derivados, combustíveis e lubrificantes, cigarros, energia elétrica e serviços de telecomunicações.

A PEC prevê também a extinção da Contribuição sobre Lucro Líquido (CSLL), que seria incorporada pelo Imposto de Renda (IR), com os ajustes necessários às alíquotas.

A duas propostas projetam reformas ambiciosas, com a diminuição expressiva da quantidade de tributos do sistema, sustentando a ideia de simplificação, que é o grande objetivo do movimento reformista.

A terceira proposta capitaneada pelo Executivo, o PL 3.887/20, tem alcance mais pontual, e pretende criar a Contribuição sobre Bens e Serviços (CBS), em substituição ao PIS e à Cofins.

Esse é o panorama geral com relação às propostas de reforma tributária em tramitação no Congresso Nacional, e tudo indica que, caso o movimento reformista venha a evoluir, um desses projetos, de forma isolada, ou a reunião de mais de um, de forma aglutinada, dará ao país a nova estrutura do sistema tributário nacional.

O propósito neste artigo não é examinar, de forma detalhada, o mérito das propostas de reforma mencionadas. De passagem, alerta-se para a necessidade de um exaustivo debate sobre pontos polêmicos dos textos das PECs 45 e 110, em especial, ao mesmo tempo em que se coloca em dúvida a viabilidade, com a segurança necessária, de implementar uma reforma tão ampla, sem tumultuar ainda mais o sistema, pelo menos na fase de transição. Haveria de se considerar a alternativa de sequenciar uma reforma fatiada mais segura e de fácil implementação.

Caso se mantenha a opção por uma reforma de amplitude, nos termos propostos pelas PECs 45 e 110, o que se pretende levar para o debate é a mudança da definição da grandeza econômica para suportar a incidência do novo tributo a ser instituído em substituição àqueles extintos pelas duas propostas mencionadas. Ao invés da incidência sobre bens e serviços, o novo imposto deveria incidir sobre o faturamento. Explica-se.

O sistema tributário vigente desafia os aplicadores do Direito Tributário para difícil missão de distinguir mercadorias de serviços, num contexto econômico em que cada vez mais a distinção entre essas duas utilidades econômicas perde nitidez, principalmente com o surgimento da economia digitalizada, criando uma área nebulosa na delimitação de competência tributária entre ICMS e ISS. Os tribunais administrativos e judiciais estão repletos com processos discutindo essa matéria, revelando uma constante insegurança jurídica que tanto atormenta o contribuinte.

Pelos textos propostos essa discussão irá continuar, apenas com um deslocamento de foco; não se discutirá mais a diferença entre mercadorias e serviços, mas a amplitude conceitual dessas duas grandezas. Em outro raciocínio verbal, quais as atividades ou utilidades econômicas serão alcançadas pelo conceito de bens e serviços para efeito de incidência deste novo tributo.

Com relação aos bens não haverá maiores problemas, ressalvando apenas que o novo tributo não deve avançar no campo de incidência de outros impostos já existentes que não foram extintos e incorporados pelo IBS, com é o caso de ITBI, ITCMD e IPVA.

A mesma nitidez conceitual não se verificará na abordagem dos serviços. Atualmente, para a definição de serviços no plano de resolução de conflito de competência entre estados e municípios, diversos são os critérios utilizados, tais como a distinção entre obrigação de fazer e de dar, preponderância na utilidade do produto, personalização e encomenda, destinação do produto ou a expressa citação em lei complementar [1], entre outros [2]. Essa discussão perderá objeto, já que haverá um aglutinação destas duas grandezas econômicas num único fato gerador do IBS. Contudo, o debate se deslocará para a linha divisória do conceito de serviços no contexto das mais variadas atividades econômicas não relacionadas com a produção e distribuição de bens.

Afinal, qual seria o critério concebido pelos textos de reforma tributária para a caracterização de serviço a ser tributado pelo IBS?

Seria uma atividade ou um esforço do indivíduo para a produção de uma utilidade para o aproveitamento de outrem? Seria simplesmente uma obrigação de fazer? Ou, por uma ideia residual, seria toda a atividade econômica não relacionada à produção ou distribuição de bens?

Essas indagações são relevantes para o enquadramento tributário daquelas atividades econômicas não relacionadas à produção e distribuição de bens e nem a uma atividade laboral efetiva do indivíduo a favor de outrem, como por exemplo, as locações, cessões de direito de uso dos mais variados produtos, setor econômico de grande expressão na atual economia digital.

Diante dessa potencial dificuldade conceitual da hipótese de incidência do IBS, propõe-se nesta reflexão uma nova matriz de incidência, tomando como fato gerador o faturamento da contribuinte, assim entendido como a obtenção de receita decorrente da venda do seu produto, segundo o seu objeto social, independentemente de sua categorização. Nessa perspectiva não interessa se o faturamento provém da venda de bens, da prestação de serviços, da cessão de uso, de locação, de franquia ou de outros de rendimentos. Todo o faturamento irá compor a base tributária do novo tributo. Seria uma espécie de Cofins reestilizada, mas sem a reedição dos vícios e controvérsias do atual tributo, com atenção especial para o saneamento normativo com relação ao princípio da não cumulatividade, tema muito mal resolvido neste tributo atualmente cobrado.

Para esse novo modelo de incidência — com base no faturamento — por certo, poderiam ser aproveitados os demais fundamentos dos projetos de reforma atualmente tramitando no Congresso Nacional, na parte em que não lhes for conflitante, com as devidas adaptações.

Este modelo tributário simplificador teria outro grande mérito: o de alcançar toda a economia digital sem discussões jurídicas sobre a natureza econômica da atividade, se é de produção ou comercialização de um bem, de prestação de um serviço, ou de realização de uma atividade de comunicação [3], ou ainda outra atividade excluída destas categorias, visto que a base de incidência tributária seria o faturamento, rubrica contábil que engloba toda e qualquer atividade econômica eleita como objeto social do contribuinte. A possibilidade de tributação dessa economia digitalizada por esse novo tributo seria um avanço na técnica arrecadatória de interesse mundial, considerando os anseios das autoridades tributárias mundiais em inserir este segmento econômico no rol de contribuintes a suportar uma carga tributária em iguais condições dos demais setores tradicionais.

Por outro lado, conforme já adiantado linhas acima, deve-se admitir que os projetos reformistas das PECs 45 e 110 são ambiciosos e também temerários, revelando inúmeros pontos de controvérsia já levantados pelos analistas. Num sistema tributário tão complexo com o nosso, recomendável seria um reforma fatiada, talvez por competência ou com enfoque mais delimitado. Portanto, a ideia aqui proposta não presume a concordância com todos os termos dos textos em tramitação, mas representa uma alternativa viável, caso prevaleça o entendimento por um reforma de tal envergadura.

Sem pretender adentrar nos pontos controvertidos dos projetos de reforma tributária em tramitação no Congresso Nacional, a prática tributária nos conduz a pensar que os modelos propostos já vêm ultrapassados pela escolha da base tributária, repetindo erros e imprecisões conceituais que irão continuar motivando discussões, com reflexos na composição de lides tributárias que não interessam ao contribuinte e nem ao Fisco, travando o estímulo desenvolvimentista por conta da insegurança jurídica.

Considerando a dificuldade que é a implantação de uma reforma tributária, em razão de sua repercussão na vida econômica do país, deve-se aproveitar essa oportunidade para redesenhar a distribuição da carga tributária para a sociedade produtiva, em alinhamento com a capacidade contributiva, com a perspectiva de alcançar toda a economia digital, nos seus diversos formatos, que tende a cresceu em termos mundiais. Seria um despropósito aprovar de forma açodada uma reforma já ultrapassada no tempo, sem abrir a possibilidade de discussão de novos modelos mais amplos, simples e mais adaptados à economia moderna contemporânea.

[1] A Lei Complementar nº 116/2003, lista os serviços sujeitos a Incidência do ISS, e, segundo segmento doutrinário, a lista é taxativa, de modo que somente estes serviços podem ser tributados pelo imposto municipal.
[2] Importante análise sobre esse tema no livro Conflito de Competência Tributária entre o ISS , ICMS e IPI, DE Ricardo Anderle, editora Noeses, 2016.
[3] Pela repartição de competência tributária do sistema atual, a comunicação, embora seja um serviço, é tributada pelo ICMS.

Por Deonísio Koch

Deonísio Koch é advogado tributarista, professor de Direito Tributário, ex-conselheiro do Tribunal Administrativo Tributário de SC (TAT) e ex-auditor fiscal do Estado.

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