OPINIÃO | Por que a CPMF sobrevive na agenda dos governos?

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Aumentar impostos enfrenta resistências em qualquer país do mundo.

 

Entretanto, entre as alternativas disponíveis, a chance de formação de coalizões de veto à contribuição sobre movimentações financeiras é menor
Por que um imposto tão impopular quanto a CPMF (Contribuição Provisória sobre Movimentação Financeira) reaparece periodicamente como uma solução para os problemas fiscais do governo federal?

À primeira vista, poderia parecer que a CPMF permitiria elevar o gasto da União, em particular devido às consequências do combate à covid-19 sobre a situação fiscal do país. Mas isso não é verdade. Foi verdade para os governos de Fernando Henrique Cardoso e de Luiz Inácio Lula da Silva, em que a contribuição sobre movimentações financeiras auxiliou o financiamento de gastos sociais. Não é verdade para o governo de Jair Bolsonaro, pois, sob a vigência da emenda do teto, aprovada no governo de Michel Temer, aumentos de arrecadação não se traduzem em aumento do gasto, porque ele só pode ser corrigido pela inflação. Logo, no contexto atual, a aprovação de um imposto sobre transações visa a melhorar o resultado primário das contas federais.

Sem um destino de gasto tangível e de curto prazo, a aprovação de um tributo equivalente à CPMF torna-se ainda menos provável. Impostos são, por definição, impopulares, e seu destino é parte importante de sua aceitação por parte dos contribuintes. Destinar a CPMF à saúde e ao combate à pobreza foi parte importante da estratégia de aprovação do imposto nos governos FHC e Lula.

Mas, por que, apesar disso, o ministro Paulo Guedes insiste nessa alternativa? Por que esse tributo continua sendo visto como uma possibilidade, se há uma aparente e generalizada objeção a ele?

Três parâmetros informam as escolhas de governos interessados (ou necessitados) em aumentar impostos: o potencial arrecadatório das alternativas disponíveis, suas chances de aprovação parlamentar e a orientação programática dos governos.

Três parâmetros informam as escolhas de governos interessados (ou necessitados) em aumentar impostos: o potencial arrecadatório das alternativas disponíveis, suas chances de aprovação parlamentar e a orientação programática dos governos
Um imposto sobre transações tem elevado potencial arrecadatório, em particular porque movimentações financeiras são uma base inexplorada pelo fisco federal.

Durante a vigência da CPMF, entre 1996 e 2007, em média 4,3% da carga tributária total advinha da contribuição, segundo a Receita Federal. O montante foi superior à arrecadação do IRPF (Imposto de Renda sobre Pessoas Físicas), do IPI (Imposto sobre Produtos Industrializados), da CSLL (Contribuição Social sobre Lucros Líquidos) e da contribuição para o PIS (Programa de Integração Social). Foi superior a toda a arrecadação dos tributos sobre propriedade, de todos os entes federativos, somados.

Nenhuma outra alternativa se compara às transações financeiras em termos de expansão da arrecadação. As demais bases tributárias, exclusive a taxação de renda de pessoa física, já se encontram no limite daquilo que poderia ser arrecadado com elas, sem comprometer ainda mais a produção econômica.

A taxação de mercadorias e serviços, por exemplo, já é uma das maiores do mundo. Estudo de Rodrigo Orair e Sérgio Gobetti estima quanto será a alíquota sobre o consumo caso a PEC 45/2019 seja aprovada. Proposto por Baleia Rossi (MDB-SP) e em tramitação na Câmara, o projeto de reforma tributária unifica o PIS, a Cofins (Contribuição para o Financiamento da Seguridade Social), o IPI, o ICMS (Imposto sobre Circulação de Mercadorias e Serviços) e o ISS (Imposto Sobre Serviços). Os autores estimam que, caso a reforma seja aprovada, a alíquota de referência calculada para esse novo tributo chegará a 26,9%, taxa superior às praticadas na Noruega, na Dinamarca e na Suécia, por exemplo.

Há espaço para expansão da arrecadação via elevação das alíquotas do IRPF, melhorando a progressividade do sistema tributário. Entretanto, por razões constitucionais, o governo federal deve repartir quase a metade dessa arrecadação com estados e municípios. Logo, o ganho arrecadatório líquido dessa alternativa seria menor do que de uma versão de imposto sobre transações.

Embora impopular — o que traz dificuldades para formação de uma maioria de apoio no parlamento —, um imposto sobre transações teria mais chances de aprovação que as alternativas disponíveis.

Uma proposta de aumento da tributação sobre mercadorias e serviços no âmbito federal afetaria respectivamente as competências de estados e municípios, já que todos os entes têm tributos incidentes sobre o consumo. Bancadas regionais tendem a superar as divergências partidárias quando se trata de perdas de receitas para suas respectivas bases eleitorais. As dificuldades de negociação da PEC 45/2019 são um indicativo das vicissitudes a serem enfrentadas por uma estratégia de elevação da arrecadação via impostos indiretos sobre o consumo.

Um aumento da tributação sobre a renda da pessoa física não exigiria maioria qualificada para aprovação. Pode ser aprovado por legislação ordinária, o que requer a aprovação por maioria simples sobre o número de presentes na sessão de votação. Mas o aumento mobiliza a reação negativa de grupos afluentes, cujas estratégias de veto são ainda pouco estudadas. De qualquer modo, supõe-se que as estratégias sejam efetivas, pois mesmo os governos petistas não buscaram aumentar a arrecadação sobre essa base. Diferentemente, o PT buscou em duas oportunidades renovar a CPMF, a despeito do fato de que sua aprovação exigisse a maioria qualificada de uma emenda constitucional.

Aumentar impostos enfrenta resistências em qualquer país do mundo. Os governos não ignoram que não é fácil aprovar um imposto como a CPMF. Entretanto, deve fazer parte do cálculo dos governos o fato de que, entre as alternativas disponíveis, a chance de formação de coalizões de veto à CPMF é menor.

Por fim, há que se considerar a orientação ideológica dos proponentes de mudanças tributárias. Está no mapa ideológico da equipe econômica do governo federal reduzir a tributação incidente sobre folhas de pagamentos e evitar aumento da tributação sobre a renda. De acordo com essa orientação, tributar a renda dos mais ricos significa punir os indivíduos mais produtivos, reduzindo seus incentivos para o trabalho, portanto, reduzindo a atividade econômica. É compatível com a orientação da equipe econômica a escolha por criar um tributo de base ampla se a alternativa é penalizar os alegadamente mais produtivos.

“Temos que desonerar o custo do trabalho. Enquanto as pessoas não virem com uma solução melhor, eu prefiro esse imposto de m…”, declarou polidamente, como de hábito, o ministro Guedes, nessa semana que passou.
Eduardo Lazzari é mestre e doutorando em ciência política (USP) e pesquisador do Centro de Estudos da Metrópole (CEM) e da Rede de Políticas Públicas & Sociedade. Foi pesquisador visitante na Universidade Harvard, nos EUA.

Marta Arretche é professora titular do Departamento de Ciência Política da USP e pesquisadora do Centro de Estudos da Metrópole. Foi editora da Brazilian Political Science Review (2012-2018) e pró-reitora adjunta de pesquisa da USP (2016-2017). É graduada em ciências sociais pela UFRGS, fez mestrado em ciência política e doutorado em ciências sociais pela Unicamp e pós-doutorado no Departamento de Ciência Política do Massachussets Institute of Technology, nos EUA. Foi visiting fellow do Departament of Political and Social Sciences do Instituto Universitário Europeu, em Florença.

Fonte: Jornal Nexo

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