Reforma do Processo Administrativo é posta de lado em meio às discussões relativas ao direito tributário material
A reforma do Processo Administrativo é proposta que tem sido posta de lado em meio às discussões relativas ao direito tributário material, mormente a tributação sobre o consumo. Ocorre, entretanto, que as questões não podem ser analisadas separadamente, haja vista que a complexidade legislativa implica em aumento de litígios, e de outro lado, divergências interpretativas aumentam o grau de complexidade sistêmico normativo.
Atualmente tramita o Projeto de Lei Complementar nº 381/2014, originado do Projeto de Lei do Senado nº 222/2013 de autoria do senador Vital do Rêgo, com o objetivo de estabelecer normas gerais sobre o processo administrativo fiscal no âmbito das administrações tributárias da União, dos estados, do Distrito Federal e dos municípios.
O referido projeto endereça questões de extrema relevância e caras aos contribuintes no contencioso administrativo, como os recursos cabíveis, os respectivos prazos para sua apresentação[1], e a composição paritária do órgão julgamento em segunda instância.
De outro lado, deixa escapar a oportunidade para resolver questões relevantes e ainda controversas na práxis, como a questão do desempate, caso a composição paritária não chegue ao consenso, a contagem do prazo (dias úteis ou dias corridos), a metodologia de escolha de representantes do fisco e dos contribuintes, ou a aplicação de precedentes qualificados.
Uma proposta simples, mas eficaz, comentada pela Conselheira Rita Eliza Bacchieri[2], seria a adoção de regramento processual semelhante ao art. 313 do Código de Processo Civil, autorizando a suspensão de processos administrativos no caso de a constitucionalidade da matéria ser debatida em repercussão geral.
Do ponto de vista estrutural, é necessário pontuar que qualquer proposta de uniformização deve considerar os impactos financeiros nas contas públicas, principalmente de municípios, diante dos elevados custos que um contencioso administrativo mais robusto pode implicar vis-à-vis seu potencial arrecadatório.
O PLP nº 381/2014 inicialmente estabeleceu a discricionaridade para municípios com 40.000 (quarenta mil) habitantes residentes ou menos para adotar ou não os seus preceitos, conforme o último censo demográfico divulgado pela Fundação Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE).
Embora louvável a iniciativa de adoção de um indicativo objetivo para a obrigatoriedade da eventual lei, qual o critério de discriminem para que se indique 40.000 habitantes e não 45.000? É possível que um município com 41.000 habitantes residentes terá condições de assumir o aumento do custo de contencioso administrativo enquanto um de 40.000 não?
É importante ter em consideração que o próprio PLP prescreve a sanção para os entes federativos que não se adequem à proposta no prazo de 2 anos, impedimento a recepção de transferências voluntárias da União, salvo aquelas relativas a ações de educação, saúde e assistência social, até que esse requisito seja atendido.
Ou seja, os municípios poderiam ter sua capacidade financeira para a prestação de serviços públicos essenciais reduzida por ter de implementar uma estrutura de contencioso administrativo que não significará aumento de arrecadação ou por eventuais cortes nos repasses voluntários da União. Nessa linha, teria andado bem a Comissão de Finanças e Tributação, ao aprovar substitutivo ao PLP, em aumentar o critério de adoção obrigatória para o limiar de R$ 500.000,00, caso não haja alterações no sistema jurídico tributário.
Isto porque, caso aprovada a Proposta de Emenda Constitucional nº 45/2019, a uniformização do contencioso administrativo tributário retorna, agora com caráter impositivo constitucional a luz do que prescreveria o §8º do art. 152-A: § 8º Cabe à lei complementar disciplinar o processo administrativo do imposto sobre bens e serviços, que será uniforme em todo o território nacional.
Nesse cenário, não haveria mais espaço para discricionaridade quanto à implementação de regras comuns.
Uma alternativa viável para a contenção de gastos e a implementação de regras processuais uniformes no âmbito do IBS seria a formação de “comarcas administrativas”, possibilitadas graças a identidade da norma material.
Voltando a proposta, é interessante notar que o PLP nº 381/2014 prescrevia em seu texto original, a possibilidade de veiculação de súmula vinculante para dirimir a controvérsia entre administrações tributárias de todos os estados e do Distrito Federal, desde que submetida e aprovada por decisão de dois terços dos membros de colegiado composto pelos presidentes dos colegiados de instância superior a que se refere o PLP.
Embora a Comissão de Constituição e Justiça e Cidadania tenha reputado o referido dispositivo inconstitucional por ferir o pacto federativo, entendemos que a existência de um órgão consultivo ou judicante que alinhe o entendimento dos órgãos administrativos de estados e municípios acabariam por resolver grande parte do contencioso fiscal hoje existente relacionado à guerra fiscal seja entre estados e municípios, pelo conflito de competências entre ICMS e ISS, seja entre Estados, em razão da glosa de créditos ou mesmo da definição do ente tributante.
Um exemplo que poderia ser seguido, é o caso do Tribunal de Justiça da União Europeia, que se pronuncia sobre os processos submetidos à sua apreciação[3], nessa linha, os órgãos da administração poderiam seguir com certo grau de independência, mas submeteriam algumas questões, principalmente relacionadas à guerra fiscal, a este colegiado. Que poderia eventualmente também atuar como órgão de harmonização interpretativa.
Essa potencial uniformização deverá prever, em nosso entendimento, regras de transição específicas para que contribuintes julgados sob a égide de normas processuais pretéritas não sejam prejudicados em relação a seus concorrentes, evitando-se nova leva de litígios, agora buscando o cancelamento de decisões pretéritas ou a aplicação das novas regras a casos anteriores, a exemplo da discussão que se tem hoje sobre o voto de qualidade.
Apesar de a padronização das regras processuais administrativas relevarem um passo para a redução do contencioso administrativo, a medida não é suficiente para resolver a questão em sua perspectiva embrionária, muito relacionada ao relacionamento entre a administração pública e os contribuintes, que tende a melhorar a partir da introdução e desenvolvimento da transação em matéria tributária, bem como programas de compliance cooperativo, a exemplo do Programa nos conformes em SP.
O respeito aos precedentes pode e deve exercer um papel fundamental no apaziguamento das relações entre o fisco e os contribuintes. Resolvida a questão de forma definitiva pelo poder judiciário, caberia às partes envolvidas a adesão ao entendimento prolatado e não mais buscar estratagemas e interpretações enviesadas para escapar ao resultado de julgamento que lhe foi desfavorável.
No atual cenário de um microssistema de cobrança da dívida ativa tributária é fundamental as Procuradorias atuarem para a melhoria do ambiente econômico e na redução da litigância. Um exemplo, é o papel da Procuradoria Geral da Fazenda Nacional que pode harmonizar a utilização da transação tributária e a lista de dispensa de contestar e recorrer, conforme regulamentada pelo art. 19 da Lei nº 10.522/2002, mecanismo que poderia ser transbordado para outros entes da federação.
Com vistas a melhor debater novas perspectivas para o processo administrativo fiscal o Observatório da Macrolitigância Fiscal (IDP) inaugurará dia 30 de outubro, com os presidentes do Carf, do IBDT e professores, sequencial de encontros a propósito do PAF federal. Na ocasião será lançada obra “Tributação Federal: jurisprudência do Carf em debate” de co-autoria de professores e conselheiros Carf em celebração de seus 95 anos em prol da redução da litigiosidade fiscal.
[1] Esta questão foi reputada inconstitucional pela Comissão de Finanças e Tributação, segundo relator Dep. Fernando Monteiro: Tomando o paradigma dessas decisões por orientação, parece razoável afirmar que normas gerais são aquelas que “determinam parâmetros”, ou ainda as “que se contenham no mínimo indispensável ao cumprimento dos preceitos fundamentais” (ADI 927-MC, rel. Min. Carlos Veloso, com apoio em doutrina de Alice Borges). Em sentido contrário, ainda na dicção da Corte Suprema, não têm caráter geral as “normas que estabelecem particularizadas definições (…), que assinalam com minúcia o iter e o regime procedimental, recursos cabíveis e prazos de interposição (…)” (ADI 927-MC, rel. Min. Carlos Veloso, citando Celso Antonio Bandeira de Mello). Nessa linha de raciocínio, passando ao exame em concreto da Proposta, pode-se afastar de pronto a competência do Congresso Nacional para legislar sobre a fixação de prazos, sobre a organização das administrações tributárias estaduais e municipais e até sobre a forma de apresentação de votos e relatórios nos órgãos julgadores, matéria de caráter tipicamente regulamentar.
[2] Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=CnUoEgbMOCY>.
[3] Disponível em: <https://europa.eu/european-union/about-eu/institutions-bodies/court-justice_pt>.
LUCAS BEVILACQUA – Prof. dr. de Direito Financeiro e Tributário (PPGDP/UFG) e coordenador do Observatório da Macrolitigância Fiscal (IDP/Brasília). Ex-conselheiro titular da 1ª Secção do Carf/ME (2016-19). Assessor de ministro do STF.
MICHELL PRZEPIORKA – Sócio de Takano | Przepiorka Advogados. Conselheiro do Conselho Municipal de Tributos. Mestre em Direito Tributário Internacional pelo Instituto Brasileiro de Direito Tributário – IBDT. Membro da Comissão Especial de Direito Tributário da OAB/SP.
Fonte: JOTA