Fernanda Pacobahyba: “Materialidade do ICMS deve perder força e precisa mudar”; confira entrevista

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Diálogo Econômico: titular da Sefaz fala da reforma tributária, da complexidade para manter o equilíbrio das contas na pandemia e do avanço tecnológico dos processos da pasta

Legenda: Secretária da Fazenda concedeu entrevista exclusiva ao Diário do Nordeste, na terceira edição do Diálogo Econômico, produto de entrevistas em profundidade sobre Economia
Foto: Arte sobre foto de Thiago Gadelha

Com a instabilidade político-econômica no Brasil e a nova onda de disseminação da Covid-19, ainda em meio a novas variantes mais contagiosas do vírus, a Secretaria da Fazenda (Sefaz-CE), assim como o próprio governo, precisou mudar o ritmo de tomada de decisões. Medidas de médio ou longo prazo deram lugar a um planejamento quase imediato.

Quando assumiu a Secretaria da Fazenda (Sefaz-CE) em janeiro de 2019, Fernanda Pacobahyba não poderia fazer ideia de que comandaria os cofres do Estado do Ceará durante o momento mais crítico da pasta. Entre a necessidade de viabilizar o teletrabalho para servidores, o atendimento virtual aos contribuintes e a desburocratização de processos, ela vem comandando uma verdadeira – e acelerada – transformação.

Com exclusividade ao Diário do Nordeste, na terceira edição do Diálogo Econômico, a secretária relembra duros momentos de administração da pandemia no Estado e reforça a necessidade de um diálogo aberto e consistente em Brasília para se conseguir chegar a um consenso para a aprovação de uma reforma tributária.

Confira na íntegra a entrevista com Fernanda Pacobahyba

Com o forte impacto da pandemia, os cofres do Ceará sofreram a maior queda de arrecadação entre os estados do País no ano passado. A que a senhora atribui esse resultado?

Não dá para você olhar só a economia do Ceará. O contexto, nesse momento, é muito importante. E o Ceará se manteve durante praticamente toda a pandemia em 3º lugar em mortes. A partir do dia 16 de março, quando o governador decreta estado de emergência em saúde, o Ceará foi um dos poucos estados que tomaram medidas realmente efetivas de lockdown. Porque algumas unidades da Federação ficaram fazendo aquele lockdown parcial, que não teve tanto impacto. Nossa economia, e aí é a característica do PIB (Produto Interno Bruto) cearense, em torno de 70% a 75% se situa entre comércio e serviços. Aí quando pega a matriz de arrecadação do Estado, o ICMS que representa quase 95% da nossa arrecadação própria, é um tributo que incide sobre o comércio e sobre algumas prestações de serviço.

Se tem uma política de governo que está prestigiando a ciência naquele momento, no sentido de trazer uma segurança para a vida das pessoas, obstaculizando ou tornando aquelas atividades num outro patamar, então efetivamente você tem impacto. Eu credito isso primeiro à força que têm o comércio e a prestação de serviço aqui no nosso Estado e às medidas realmente efetivas de isolamento social que foram tomadas pelo Ceará. Vai ser tão importante na história do coronavírus a gente perceber quanto alguns estados faziam medidas e daqui a pouco voltavam atrás. Depois fazia de novo, voltava atrás de novo. O Ceará você vê que tem uma linearidade de comportamento. E foi um comportamento que teve um sentido muito forte de proteção das pessoas.

 

Foto: Thiago Gadelha

Como foi a experiência da senhora na administração dessa crise?

Eu jamais poderia imaginar na minha vida, quando eu assumi no dia 1º de janeiro de 2019, que eu estaria à frente da Secretaria da Fazenda no momento mais crítico da história dela. São 185 anos que a Sefaz faz em 2021 e, de fato, a maior crise nós tivemos no ano passado. Ainda acreditamos que o ano de 2021 vai ser muito desafiador. Mas foi necessária muita resiliência e um olhar de muita aceleração. Não bastava você olhar uma realidade difícil, confusa, em que você não tinha um desenho bem definido daquilo, como a gente ainda não tem em grande medida isso hoje. Nós precisávamos tomar medidas rápidas.

Ficou muito claro para a gente aqui à frente da gestão quanto é essencial a atividade do fazendário nesse sentido da arrecadação, porque veja: como é que a gente ia permitir entrada de caminhões aqui no Estado do Ceará se a gente tem uma fiscalização que cobra tributo muitas vezes na entrada do Estado? Então a Sefaz se manteve de pé durante todo esse tempo. Nós não paramos em nenhum momento a nossa fiscalização, os colegas foram guerreiros e a gente tocando nessa liderança porque sabíamos dessa necessidade, mas foi muito desafiador.

Qual o resultado disso em termos de aprendizado? Hoje, eu não tomo mais decisões para três meses. A gente toma decisão para um mês, analisa cenários, vê os dados, toma mais um mês. Porque nós estamos vivendo numa intensidade, numa mudança de contexto que tem feito uma diferença muito grande na administração.

Quais mudanças foram necessárias para se adaptar nesse cenário?

Houve várias. Primeiro a questão de nos impormos. Fazia muito tempo que a gente pensava na questão do teletrabalho, mas nós não tínhamos isso ainda montado, então tivemos que fazer a fórceps. Todo o atendimento da Sefaz, que está espalhado em 14 municípios, teve que mudar totalmente. Hoje, a gente faz o atendimento agendado, por videoconferência, de uma forma totalmente diversa.

O que nós aprendemos com isso? Que quando a gente mede os índices de produtividade dos servidores fazendários, eles aumentaram muito em 2020. As pessoas foram para casa, mas o índice de produtividade individual e coletivo aumentou. Isso deixou muito claro para a gente que é possível ter uma boa prestação de serviço. O cidadão, ele nos quer, de fato, na palma das mãos dele. E é isso, é onde a gente quer estar, nos smartphones, aproveitamos para desenvolver uma série de aplicativos.

Então, hoje a gente tem aplicativo do IPVA, a gente tá dentro do Ceará App com o Sua Nota Tem Valor, a dívida ativa tá dentro do aplicativo. Enfim, a gente tem uma infinidade de coisas que estão ou nos aplicativos ou nas nossas páginas na internet. Isso para a gente é uma riqueza muito grande.

 

Legenda: Pandemia exigiu que tomadas de decisão fossem mais rápidas e para menor prazo, avalia a secretária Fernanda Pacobahyba
Foto: Thiago Gadelha

Muito foi discutido sobre a sanidade fiscal do Estado, que deu a capacidade ao Governo de gerar tantas medidas de apoio durante a pandemia, mas depois de quase um ano, qual a situação dos cofres públicos no Ceará? E quais são as perspectivas para 2021?

Nós encerramos o ano de 2019 com superávit, nosso primeiro ano de gestão. Nós temos uma tradição de sustentabilidade fiscal, mantivemos uma excelente performance em 2019. Tanto que conforme o relatório do CLP (Centro de Liderança Pública), que é um ranking de competitividade que foi divulgado em setembro de 2020, o Ceará se consolidou como 4º do País em solidez fiscal e o mais competitivo do Norte e Nordeste. Então tivemos uma boa performance.

Apesar do ano de 2020 ter sido muito desafiador, nós adotamos diversas medidas, especialmente tomadas no âmbito do Cogerf (Comitê de Gestão por Resultados e Gestão Fiscal) de restrição orçamentária, de eficientização da máquina pública. E isso nos habilitou a encerrar o ano de 2020, logicamente contamos com o auxílio do Governo Federal, isso também pra gente é uma coisa que não podemos passar despercebido, mas se não tem uma boa gestão, gasta mal o dinheiro.

Então, o resultado disso: encerramos o ano de 2020 também com as contas bem equilibradas. Estamos começando o ano de 2021 em um cenário de muita incerteza, mas fizemos uma boa tarefa de casa em 2020 para que 2021 possa ser um ano, eu diria, desafiador. Para estarmos mais e mais atentos no sentido instantâneo, a como está a arrecadação, o repasse federal, a arrecadação do Governo Federal (que impacta no nosso fundo de participação dos estados), mas também com os pés no chão e que temos mantimentos para atravessar o deserto de 2021.

A coisa que é mais importante para esse momento, especialmente no primeiro trimestre, se chama prudência. Sermos módicos nos gastos é superimportante, guardar o dinheirinho, aquela reserva que está embaixo do colchão, no sentido de equilibrar as nossas receitas e ficar observando realmente esse contexto, que não está nada fácil.

Uma coisa que eu acho que é superimportante – eu não sou economista, sou jurista – mas a gente acabou se esquecendo no mundo nos últimos anos que a economia é uma ciência social.

A gente foi para um caráter muito técnico da economia, quando a gente esquece que ela é basicamente fundada na expectativa das pessoas. E a gente tem expectativas ruins. Um cenário nacional que não avançou na vacina. A gente já podia estar em outro patamar, mas enfim, não adianta chorar o leite derramado.

Mas de que forma a gente consegue superar isso? Pelo menos essa questão da vacinação para trazer mais esperança para as pessoas e ainda mais aos investidores, que está relacionado também a outro tópico, super importante, que são as reformas estruturais que o Governo Federal também não encaminhou, especialmente a reforma tributária.

Como foi o apoio do Governo Federal desde o começo da pandemia, no ano passado?

Foi supercomplicado para o Estado do Ceará o plano que se desenhou e que acabou combinando com a lei complementar Nº 173/20, que veio do auxílio financeiro para os estados. Foi um plano aprovado no dia 27 de maio, quando nós tínhamos pandemia desde março. Outro detalhe, que não pode ser esquecido: em fevereiro, nós tivemos o motim dos policiais no Ceará, que já impactou na nossa arrecadação.

A primeira prancha (de pagamento) que nós recebemos só em junho. Imagina um auxílio desse que você passa março, abril e maio para receber o dinheiro em junho. Em quatro parcelas. Outro detalhe: da ajuda financeira que veio para os estados, o Ceará ficou em último lugar per capita do Brasil. Nós recebemos uma média acho que em torno de R$ 100. Houve estado que recebeu R$ 300 por pessoa, três vezes mais. Então quer dizer que o cidadão do Mato Grosso do Sul vale três vezes mais do que o cearense?

Essa ajuda federal veio atrasada e desarmônica. Por quê? Porque nós temos unidades da federação que são marcadamente agrobusiness, como o caso do Mato Grosso, Mato Grosso do Sul. Com a cotação do dólar a quase R$ 6, imagina com esse pessoal exportando grãos a quantidade de dinheiro que estava nesses estados. Muito volume de dinheiro. E eles não tiveram queda de arrecadação e receberam três vezes mais do que o Ceará.

É falta de uma coordenação. O Governo Federal precisava ter dado um zoom (na situação dos estados), porque fazer justiça não é dividir igual, fazer justiça é você observar a situação de cada um e distribuir o dinheiro de acordo com a necessidade de cada qual.

Detalhe: o Ceará estava em último lugar per capita no auxílio dos estados e era o terceiro lugar em mortes no Brasil. Ninguém me convence que essa repartição foi justa.

O último repasse que houve nós recebemos do auxílio aos estados auxílio financeiro, junho, julho, agosto e setembro. Foram quatro meses, era o que estava previsto. Aí nós fizemos complementação de FPE, estava previsto até novembro, mas nem recebemos, porque já não estava tendo decréscimo nominal comparativamente a 2019. Então, a última verba federal de auxílio no tocante a questão de queda de arrecadação foi em setembro de 2020.

Governo do Estado lançou um pacote com medidas no ano passado para mitigar os efeitos da pandemia, que incluía facilitação do pagamento do ICMS, prorrogação do Simples, regimes especiais de tributação. Esses programas foram efetivos? Será necessário repetir agora? 

Esses programas foram iniciados naquele período pandêmico, mas a maior parte deles é para sempre. É dali pra melhor. Então, por exemplo, a principal obrigação acessória do Simples Nacional, que é a entrega da EFD (Escrituração Fiscal Digital), é um custo para as empresas. O governador liberou a entrega daquela EFD naquele momento e vai ser para o resto da vida. As medidas pontuais foram, basicamente, os parcelamentos, no caso do Simples Nacional, que não depende do Ceará, porque quem dispõe sobre é o Comitê Gestor Simples Nacional em Brasília, e a outra foi o Refis, que tem alguns parcelamentos mais elastecidos que permanecem até hoje, vão permanecer para sempre aqui, em tese no Estado do Ceará.

O Refis foi uma medida de janeiro a maio, uma medida pontual, que se encerrou naquele momento e que teve um efeito por conta de abarcar o período crítico (da pandemia). Depois de agosto, começa a ter alta na nossa arrecadação, uma economia que realmente pulsou, especialmente com a injeção de quase R$ 15 bilhões do auxílio emergencial aqui no Ceará. Realmente é um volume de dinheiro muito grande que não justificava dispensar o pagamento de tributo naquele momento.

Uma demanda forte do setor produtivo diz respeito justamente a um programa de refinanciamento dos débitos. O governo cogita realizá-lo novamente?

O Estado do Ceará já não acredita nessa política de refinanciamento há muitos anos. Inclusive, foi aprovada na Assembleia Legislativa em 2017 uma lei obstaculizando o Refis no Estado do Ceará. Agora, o Refis do ano passado foi uma demonstração da sensibilidade porque, lógico, nós estamos vivendo uma guerra mundial, ninguém tem dúvidas com relação a isso. A situação que a gente tinha teve que ser suavizada, mas hoje nós não conseguimos enxergar qualquer necessidade relacionada aos contribuintes do ICMS, porque não significa os contribuintes médios, são um nicho destacado na sociedade.

A gente viu o incremento do comércio especialmente no segundo semestre de 2020. Então, a priori, nós não enxergamos, neste momento, um horizonte para outros programas de refinanciamento. O Ceará não acredita mais nessa política. Mas estamos sempre olhando o contexto.

Houve um endividamento muito forte das empresas nesse período? Como está a dívida ativa do Estado? 

O governador exarou diversos decretos que suspenderam novas inscrições, teve uma série de coisas para evitar causar mais traumas para os contribuintes. Então, depois de julho, agosto, é que se voltou o ciclo natural do processo. Mas a dívida ativa do Estado do Ceará tem permanecido num patamar em torno de R$ 14 bilhões. É o que nós temos hoje. E não teve grandes aumentos, até porque tem um refluxo de processos que ainda estão andando do final do ano passado pra cá. Mas não houve grandes alterações não.

Há várias ações (para reaver os recursos). A dívida ativa é de competência da Procuradoria Geral de Estado, que tem empreendido dinâmica a esse processo, o portal do contribuinte tem sido uma ferramenta excelente para fazer essas negociações, elastecer o prazo, aumentar as formas de ofertar garantias pra poder discutir o crédito tributário. A doutora Camile Cruz lá tem sido uma excelente representante dessa dívida ativa do Estado do Ceará e tem feito qualquer negócio para efetivar essa quitação.

E como a senhora avalia a política de concessão de incentivos para atrair negócios da iniciativa privada, um instrumento largamente utilizado pelo Estado? Como fica a situação dos incentivos já concedidos? E futuros, deve haver alguma mudança?

O que a gente tem feito: basicamente, a política se manteve é linear, da mesma forma como ela já é há alguns anos no Estado. Eu acredito que já passou da hora desse País realmente discutir uma reforma tributária. Não dá mais pra você ficar resolvendo as coisas casuisticamente.

Vou dar um exemplo: de que adianta o Estado do Ceará querer fazer uma revolução dos seus benefícios fiscais, para tirar benefício fiscal, se Pernambuco é vizinho nosso, o Rio Grande do Norte vizinho nosso está agressivo na guerra fiscal? O Estado não tem como ganhar se ele estiver sozinho. As unidades da Federação precisam se unir pra chegar a um patamar que seja aceitável e bom para todo mundo, para a coletividade, para os empresários, para os governos, enfim, isso precisa ser acertado, não dá mais.

A gente está num ambiente muito confuso de de sistema tributário nacional, especialmente em ICMS, que não tem possibilidade de você tomar medidas unilaterais. Eu tenho falado muito, tenho sido muito ativa no Confaz (Conselho Nacional de Política Fazendária) apontando isso, falando essa questão da reforma tributária, apresentando propostas para que efetivamente a gente caminhe pra um outro patamar.

E em relação ao hub aéreo, especificamente. Encerra-se em março o prazo para que as empresas que são beneficiadas, no caso a Gol e a Latam, retomem a quantidade mínima de voos para fazer jus ao benefício, o que não deve acontecer. O Estado vai prorrogar? 

Os acordos que nós celebramos com as empresas aéreas tiveram todos que ser revistos. Como isso é fruto de um convênio celebrado no âmbito do Confaz, a gente teve que levar o assunto para lá. Mas de fato, não é só no Ceará, na Bahia, no Distrito Federal, no Rio de Janeiro ou todas os estados que tenham esse hub, e aí foi aprovada uma alteração do convênio do celebrado no Confaz justamente porque é fato notório que a atividade do planeta mais foi atingida com a pandemia foi a aérea. Não tivemos ainda a reunião desse ano, mas esse tema vai voltar ao palco do Confaz, não tenho a menor dúvida.

A alta dos combustíveis levantou novamente a questão da carga tributária, especificamente do ICMS. A proposta do governo seria fixar essa alíquota. Como isso impactaria as contas do Estado?

Não só a receita do Ceará, o que acontece tradicionalmente nos estados da federação, relativamente ao ICMS. A partir de 1988, você tem a configuração e tem uma forte incidência nas chamadas blue chips, que é o quê? Energia, comunicação e combustível. Todas as unidades da federação tributam de forma mais agressiva isso, por quê? Porque é um crédito tributário, normalmente fruto de empresas oligopolizadas ou monopolizados, como a gente tinha no caso da Petrobras.

Existe uma predominância dessa arrecadação. Quando o Governo Federal (traz essa proposta) e não é a primeira vez que o presidente Bolsonaro toca nesse assunto, ele vem trazendo o assunto de forma equivocada, isso nos deixa extremamente temerosos, porque uma parcela expressiva da nossa arrecadação vem daí.

Agora, o que é importante? A sociedade compreender que os orçamentos dos estados e dos municípios, hoje, são orçamentos tímidos. A gente não pode esquecer que 68% do que é arrecadado nesse País fica com a União. Só que quem tem que enfrentar o hospital lotado, é o prefeito, é o governador. Fica muito complicado quando você quer falar de reforma tributária, você ataca a principal fonte de arrecadação de forma inverídica, porque os aumentos recentes dos combustíveis não foram por causa do ICMS.

Às vezes a população não compreende, é um assunto que é difícil. Por isso que essa reforma tributária precisa vir como transparência, com outra estrutura que qualquer cidadão compreenda o que está acontecendo com a vida dele.

Mas é uma incidência alta justamente sobre serviços que são essenciais.

Verdade. Mas a população só precisa entender o seguinte: ok, não quer pagar sobre energia? Então você quer pagar sobre o quê? O problema é que a discussão como se diz se resume a “você não quer pagar sobre energia, você não vai pagar sobre nada”, e não é isso que vai acontecer. Aí vai o quê? Tributar mais o arroz, o feijão, a carne? Não dá para abrir mão do orçamento e dizer que o Estado vai ficar inteiro.

O Ceará tem quatro, cinco milhões de pessoas abaixo da linha da pobreza. Então, é uma sociedade que precisa muito de serviço público. Muitas vezes, as elites pensam como se todo mundo morasse no Meireles, não é assim. Uma parcela expressiva, 90% da nossa população usa o serviço público de saúde.

Então assim, como é que vai ficar essa situação? A educação também, grande parte dos estudantes do Ceará não está nas escolas privadas. É uma elite quem está na (escola) privada hoje, a maior parte está na pública, então quem é que vai bancar isso? On, vocês não querem (tributação na) energia? Vai querer onde? A gente precisa fazer esse acordo.

As propostas de reforma tributária que aí estão visam trazer a neutralidade. Ok, vamos imaginar, vai ser (uma alíquota de) 20% da energia, do óleo diesel, do batom, da joia. Para qualquer coisa é uma alíquota só. E vai ser 20% para a prestação de serviço que, hoje, no Brasil, o ISS é de 5%. Os prestadores de serviço aguentam? Essa é a grande discussão no Congresso Nacional.

Com as novas presidências na Câmara e Senado poderemos ter uma nova discussão sobre a reforma tributária. Há ambiência para se avançar nesse debate?

Sim. Mas os grupos de interesse são muito fortes. O nosso empresário brasileiro fala muito que quer mais competitividade. Mas o que acontece? Cada empresário do Brasil quer procurar a Receita Federal, a Secretaria de Fazenda nos Estados, e querem criar um regime especial diferente pra o setor deles. Chega o pessoal do agronegócio e acha que é o mais importante do planeta.  Aí chega o pessoal do aço e acha que é o mais importante do planeta. Aí chegam os professores e acham que são os mais importantes do planeta. Todo mundo se acha o mais importante do planeta.

A nossa legislação é toda repicada. São vários capítulos. Um para atender um setor, outro para atender outro. Quem é que vai entender um negócio desse? Não tem quem entenda. E aí o Brasil quer ganhar competitividade internacional, ter uma legislação simplificada. Como? Se cada um quer construir uma regra para chamar de sua?

O primeiro grande problema é que as pessoas precisam compreender que para a gente chegar num nível de racionalidade mediano – que a gente já perdeu a racionalidade há muito tempo – a gente vai precisar ter uma certa igualdade. Só que os grupos de interesse não deixam isso acontecer. Aí é que mora o grande perigo.

E o presidente Bolsonaro, que tem falado muito que quer melhorar a performance do Brasil, para que seja um bom lugar pra fazer negócios, quando ele pede para a gente fazer um remendo no ICMS para atender o caso dos caminhoneiros ele está criando mais uma regra de exceção. Hoje você tem mais exceção do que regra. Num mundo onde tem mais exceção do que regra, não tem regra. É isso que acontece na tributação hoje do Brasil.

E o ICMS é o palco que eu lhe dou 500 exemplos aqui. Essa regra aqui foi feita para empresa tal, às vezes. E não é subterfúgio não, às vezes é por conta da forma dela de pagar imposto que é diferente. Isso não existe, não deveria existir. Aí quem pega nosso livro, vai dar quase um código civil, vai dar dois mil artigos. Como é que você quer entender um negócio desse? Mas precisa avisar que a gente vai criar duas regras e todo mundo vai ter que caber ela. Eu quero ver onde é que vai cair.

Entre os modelos em debate no Congresso, qual seria o mais adequado na visão da senhora e por quê? É possível sair uma mudança mais profunda do sistema tributário?

Aí eu falo como jurista. Eu acho que tem duas possibilidades que a gente vai precisar sentir qual o grau de maturidade que a nossa sociedade vai aceitar, pelos seus representantes até onde ela quer chegar. Você tem uma primeira possibilidade, para mim a melhor proposta que tem lá é a proposta dos secretários de fazenda, nós fizemos uma PEC que usa as ideias da PEC 45, mas traz diversos contornos diferenciados.

Para mim, é a melhor proposta. E aí ela muda a estrutura do ICMS, vai para uma estrutura de Impostos de Bens e Serviços (IBS), então radicaliza totalmete o que a gente tem hoje – esquece ICMS, esquece ISS, esquece PIS/Pasep, Cofins, a gente vai criar um outro tributo. É radical essa mudança.

Mas aí, ok, segundo cenário. “Não aguento”, “os grupos de interesse, pessoal do serviço não vai deixar”, porque aí vão pagar a mesma alíquota do pessoal do comércio. “Não conseguimos avançar”. Então, tá. Vamos fazer o que eu chamo de uma meia sola no ICMS. Tem uma proposta aqui que tem reverberado muito nacionalmente, que é o movimento do Simplifica Já. É um movimento que surge em São Paulo, grande, que tem vários apoiadores. E é pra dizer o seguinte: “não, não, vamos continuar com o que a gente tem, com ISS”, E aí ataca-se os problemas, não cria um padrão de IVA (Imposto de Valor Agregado). É uma possibilidade. Vai depender do nível que nós vamos conseguir chegar de diálogo.

A materialidade de ICMS tende a perder força nos próximos anos. A gente vai estar produzindo a nossa própria energia elétrica, sustentando a nossa casa com ela, então não vai ter tributo, e com ela a gente vai recarregar nosso carro, então não vai ter mais combustível para carro. Acabou que vai afetar essa matriz que é superimportante hoje e que se vê afrontada com a fala do presidente Bolsonaro.

Nós acreditamos que a materialidade do ICMS em alguma medida precisa ser mudada, porque o que vai ganhar força nos próximos anos é aquilo que é incorpóreo, que é imaterial. E o ICMS é um tributo que incide sobre coisas corpóreas, sobre mercadoria, material que você pega. Hoje quais são as maiores empresas do mundo? São todas de tecnologia. Não produz um bem que você pega. Isso daí é uma mudança muito radical e os estados estão com o seu burrinho amarrado numa materialidade que vai perder valor nos próximos anos.

O problema é que a PEC 45, que é esse modelo que o Paulo Guedes tem falado bastante, o IVA é um tributo ultrapassado. Ele é um tributo que as nações decentes nesse planeta hoje já estão revendo. Porque a gente precisa ter um tributo que se conecte a valores ambientais. A essa questão da influência das redes sociais, esse modelo que está aí não tem essa conotação.

É como se dissesse, o Brasil vai dar um salto, porque nós estamos aí na década de 40, vamos dar um salto para a década de 70, 80, mas nós ainda estaremos atrasados.

 

Foto: Thiago Gadelha

 

Como construir uma convergência em torno desse tema? 

Não tem outra alternativa. É algo que eu vejo muito pouco, hoje, sendo feito, especialmente por parte do Governo Federal, que é dialogar. Não tem como, tem que ser prestigiado mesmo o cenário, um local em que haja uma escuta ativa e exista uma possibilidade de você levar a realidade dos estados, dos municípios.

De que forma a gente faz um ganha-ganha? Não tem sentido fazer uma reforma tributária pra ferrar os estados, os municípios. A quem interessa um Estado desestruturado? A quem interessa o município desestruturado? Para população não interessa, porque as dores da população são vistas no município, ninguém mora no país, mora no município. O país é uma construção ideal, é impalpável, mas o município é a realidade física.

Quando você vê o presidente que manda para o Congresso Nacional um projeto de lei tratando do teu imposto sem conversar com você, eu acho que é uma afronta.. É no mínimo deselegante. Se a gente tá num mundo de tanta dificuldade, as pessoas com dificuldade nessa pandemia, a gente precisando avançar, todo mundo quer que o Brasil dê certo, mas cadê esse diálogo?

As propostas que estão colocadas no Congresso não modificam, contudo, o foco da tributação sobre o consumo. Como reverter essa lógica?

As propostas majoritárias só focam no consumo, o que vai reverberar a continuar a anomalia que tem no Brasil. O Brasil é um dos países que mais tributam consumo. Se pegar uma média da OCDE (Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico), a gente só perde pro Chile, que ainda consegue tributar consumo mais que o Brasil. Ela (a tributação) é injusta, ela aprofunda as desigualdades, ela é péssima. Nós precisaríamos sim de uma reforma estrutural.

Cadê a tributação sobre o lucro, IPVA sobre aeronaves, embarcações? Por que com o carrinho que você tem, com a sua moto de 125 cilindradas, você paga IPVA, mas o cara tem um jatinho não paga? Entra na cabeça de quem?

E o Governo dizendo que está precisando de dinheiro. E o povo é todo dia, jatinho de um lado pro outro, helicóptero. E a gente não pode fazer nada.  Tínhamos a previsão desse assunto aqui no Ceará, mas se levou ao Supremo Tribunal Federal (STF) por meio de uma ação direta de inconstitucionalidade e o STF entendeu que o IPVA é só sobre veículos automotores, carros, caminhões.

Então, precisava alterar (a Constituição para ser possível cobrar). Já existe uma PEC do Congresso Nacional há muitos anos, chamada PEC dos jatinhos. E aí você alteraria na própria constituição dizendo que a incidência do IPVA pode também sobre aeronaves. E já não é de hoje. Cadê?

Os Tesouros do Estado e de Fortaleza são comandados por mulheres. Mas, de forma geral, no setor público nacional, a presença da mulher nos cargos de alto escalão ainda é baixa. Como a senhora avalia esta questão? 

Nós estamos inaugurando esse mundo. Acho que a pandemia vai trazer uma revolução grande para o planeta. Se nós conseguirmos extrair as lições do bem que tem nela, porque não tem só tragédia, de solidariedade, de conseguir se conectar mais também. Eu acho que o mundo que está aí é o mundo do feminino. E aí, eu não estou falando de gênero. Tradicionalmente, esse mundo que tá indo embora, é o mundo tecnocêntrico, é um mundo que a economia foi totalmente reduzida a PIB, a produto, a crescimento, a metas. Isso não é sustentável, até porque o planeta está chegando a limites. Eu acho que a crise do coronavírus é fichinha diante do que a gente vai enfrentar no tocante a crises ambientais.

Nós vamos precisar de uma outra racionalidade. Uma nova racionalidade para consumo, para a forma como a gente vive em sociedade, de humanização. E o feminino traz muito isso. Tem muitos homens que são muito femininos, mas eu acho que essa questão do gênero no cargo, ela vem trazer um outro viés, uma outra perspectiva que durante 183 anos não foi vista.

Agora, eu acho que a gente tem feito bem feito nesse sentido de trazer um outro tom. E eu acho que o mundo está precisando disso, é uma respiração diferente.

Qual seria a marca da sua gestão?

Olha, eu acho que a nossa gestão vai ficar muito marcada por essa crise. Eu acho que tem muito a ver com isso, a gente operou muitas transformações. Antes a gente já estava operando e agora a gente teve que operar mais ainda. Eu acho que a marca da nossa gestão é a transformação da Sefaz.

Acho que a Secretaria, findando a nossa gestão, que eu acho que vai ser o tempo que vai estar findando aí essa pandemia, vai ser uma organização totalmente diferente de quando a gente assumiu. De uma forma bem radical, para melhor, se Deus quiser.

Diário do Nordeste

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