Exclusão racial no topo da pirâmide de renda do Brasil deve aumentar

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A distância entre a fatia de negros e brancos no grupo dos brasileiros 10% mais ricos deverá se tornar ainda maior, na esteira do avanço da exclusão racial em renda em 14 das 27 unidades da Federação, mostra o Ifer (Índice Folha de Equilíbrio Racial). Em 2019, pretos e pardos eram 54% dos brasileiros de 30 anos ou mais e perfaziam 30,4% do topo da pirâmide de renda.

Foto: Reprodução/ Folhapress

O resultado dessa combinação era um Ifer de -0,48, conforme a metodologia do índice, desenvolvida pelos economistas do Insper Sergio Firpo, Michael França e Alysson Portella.
Se a trajetória recente dos fatores que afetam o componente econômico do índice não for alterada, essa fatia tende a encolher ainda mais, chegando a 24% em 2046, ou -0,59 no Ifer.

O Ifer foi pensado como uma ferramenta para desvendar e acompanhar os diferentes níveis de disparidade entre negros (grupo que reúne pretos e pardos) e brancos, de 30 anos ou mais, no acesso a melhores oportunidades de vida em todo o território brasileiro.
Ele mede o quão distante a população negra está de uma situação em que sua participação em estratos de elite –como o topo da pirâmide de renda– fosse equivalente a seu peso populacional nos 26 estados e no Distrito Federal.

Essa mensuração é traduzida em números que podem oscilar entre -1 e 1. Quanto mais negativo, maior a sub-representação dos pretos e pardos; quanto mais positivo, maior a sobrerrepresentação.
Entre -0,2 e 0,2, há cenário de equilíbrio entre negros e brancos. A série histórica, por ora, vai de 2012 a 2019.

Para desenhar o componente econômico do Ifer (que tem ainda dimensões de alta escolaridade e longevidade), os pesquisadores extraíram o grupo de brancos 10% mais ricos em cada estado e identificaram o valor da renda que os separava dos demais 90% da população. Em seguida, Firpo, França e Portella calcularam o percentual de negros que estão nesse grupo.

Embora mais acentuado no Nordeste, o movimento rumo a uma maior exclusão de pretos e pardos no estrato de altos rendimentos também é esperado no Sudeste e no Norte.
O Sul caminha para uma menor disparidade, mas a um ritmo tão lento que, se mantido, levará 331 anos para resultar em um nível de equilíbrio, com a total equidade alcançada em mais de cinco séculos.

A exceção no cenário nacional é o Centro-Oeste, que tem conseguido reduzir a disparidade entre negros e brancos. Se sua trajetória recente não for alterada, a região deverá atingir o patamar de equilíbrio racial entre os 10% mais ricos em uma década. A igualdade total viria em 24 anos.

Para especialistas, a tendência de piora do desequilíbrio de renda entre negros e brancos no país é, provavelmente, explicada pela crise que a economia atravessa, quase de forma ininterrupta, desde 2014.

Por ter crescido embalado pelo vigor do agronegócio, a despeito do cenário nacional, o Centro-Oeste vem evitando esse retrocesso.
Recessões tendem a afetar desproporcionalmente a camada mais vulnerável da população –no Brasil, formada sobretudo de pretos e pardos.

Os negros são maioria entre os trabalhadores informais, os menos escolarizados e os profissionais menos qualificados. Não por acaso, em meio à pandemia, também estão entre os mais atingidos pelo desemprego de longa duração.
Essa constituição da sociedade brasileira –que pesquisadores chamam de racismo estrutural– é legado da escravidão e de como as elites organizaram a estrutura produtiva do país após a abolição.

“De cada dez anos da história do Brasil, sete foram de escravidão. A colonização não usa a violência, ela é a violência, por trás da qual existia a ideia de superioridade dos europeus sobre outros grupos humanos”, diz a psicóloga Lia Vainer, que pesquisa branquitude e relações raciais.

Embora infundado, o conceito de superioridade dos brancos persistiu após a abolição, quando os governantes optaram por promover a imigração em massa de europeus.
“Os postos de trabalho criados naquele momento foram feitos para os imigrantes brancos ocuparem. A brancura da pele se tornou, com isso, uma posse, que permite a ascensão social”, afirma Vainer.

No Sudeste, berço da industrialização do país, as consequências nocivas dessa configuração foram mais severas. Alijados do processo de modernização em curso na época, os negros que haviam migrado para a região em busca de melhores oportunidades foram, a princípio, excluídos.

“Esse processo confinou a população negra, que tinha menor poder de barganha, em favelas e morros, limitando a possibilidade de completa integração e provocando o acirramento do racismo”, diz a economista Luana Ozemela.
Segundo ela, que trabalhou no BID (Banco Interamericano de Desenvolvimento) e é sócia da consultoria internacional Dima, o racismo estrutural forjado há séculos ainda impacta os negros no Brasil.

A enorme disparidade de riqueza entre pretos e pardos, de um lado, e brancos, de outro, é uma das faces disso.
No Brasil, a renda que separava os brancos 10% mais ricos, com 30 anos ou mais, dos demais 90% nessa faixa etária era R$ 6.111,4, em 2019. No mesmo recorte para os negros, esse rendimento de transição caía para R$ 3.076,8, uma diferença de 98,6%.

A maior discrepância regional era no Sudeste: 115%. Em ordem decrescente de desigualdade vinham Nordeste (87,8%), Norte (66,9), Centro-Oeste (70,7%) e Sul (64,6%).

Embora a diferença nas linhas de corte da renda entre brancos e negros em seus respectivos estratos de 10% mais ricos fosse menor no Sul, seu Ifer reflete uma desigualdade maior que o do Centro-Oeste.
Isso ocorre porque, na segunda região, o percentual de negros que atingem o patamar mínimo do topo da pirâmide de renda dos brancos está menos distante do seu peso populacional do que no Sul.

No Sudeste, região mais desigual do país, a disparidade racial medida pelo Ifer é 70% maior que no Centro-Oeste.
Segundo especialistas, os fatores estruturais que limitam o acesso de negros a melhores condições de vida em todo o país, independentemente de suas variações locais, requerem um conjunto de medidas contundentes e coordenadas.

“Você coloca a pessoa na faculdade, mas ela demora três horas para chegar e três horas para voltar”, diz o economista Elias Sampaio, citando a realidade de muitos negros beneficiados por cotas ou linhas de crédito estudantil.
Segundo Sampaio, que é membro do conselho do Fundo Baobá para Equidade Racial e trabalha no Ministério da Economia, não colocar a questão racial na centralidade das políticas econômicas do Brasil tem sido um erro que ajuda a explicar as dificuldades de desenvolvimento do país.

“A questão racial é o elemento mais importante para discutir o desenvolvimento brasileiro. É um problema estruturante”, diz.

O estudante cotista que fica seis horas no trânsito, como no exemplo de Sampaio, costuma morar em um bairro de baixa renda, pagando aluguel ou em um imóvel próprio de baixo valor de mercado.
Ainda que consiga terminar a faculdade e aumentar sua chance de mobilidade socioeconômica, tende a esbarrar em limites menos comuns entre jovens brancos.
“Sem patrimônio, você não consegue ter seguro de vida, acesso a crédito com taxas razoáveis, que te deem acesso a capital para criar uma empresa”, aponta Ozamela.
Por isso, diz a economista, embora seja importante analisar as disparidades de renda, é preciso ir além.

Para especialistas, o primeiro passo para combater o racismo estrutural é reconhecer sua existência e a das barreiras que ele cria, o que, no país, começou a ocorrer apenas recentemente.
O economista americano Jeremy Petranka afirma que essa demora não é exclusiva do Brasil e é explicada por dois fatores. “É difícil as pessoas admitirem que apoiam um sistema que promove disparidades raciais. Requer humildade e o desejo de mudar um sistema que te beneficia”, diz o professor da escola de negócios Fuqua, da Universidade Duke.

Além disso, muitas consequências do racismo estrutural não estão escancaradas. Ele cita como exemplo a política de grandes empresas de buscar talentos apenas em universidades de elite.

As ações afirmativas e os anúncios recentes de programas de treinamento voltados para jovens negros são um passo importante, mas, segundo Petranka, insuficiente.
“Poucas empresas sabem o que seria uma amostra representativa da comunidade onde estão localizadas. Sem olhar mais profundamente essas questões, uma empresa será incapaz de combater o racismo estrutural.”

Fonte: Folhapress

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