A formação desigual do pacto fiscal brasileiro espelha uma parte da população que se orgulha das distâncias sociais
Em texto publicado em 27 de março neste Nexo, discutimos como o sistema tributário acaba por prejudicar parcelas menos favorecidas e vulneráveis da população – como as mulheres e os negros. Isso se deve ao fato de que o país criou um regime regressivo, concentrador de riqueza, que onera consumo ao invés de tributar patrimônio e renda. Percebemos como essa escolha de política fiscal tem raízes muito profundas na formação do Estado brasileiro. Desde o século 19, quando o Brasil ainda era um Império Monárquico, a resistência às tributações menos regressivas era evidente.
Na sessão do Senado de 10 de julho de 1867, o Visconde de Jequitinhonha trouxe uma proposta aos seus pares que, para ele, pareceria singela frente à iminente emissão de papel moeda: criar um tributo sobre a renda de matemática era simples: estimava haver 4 milhões de pessoas livres e capazes juridicamente detentores de renda. Se os cidadãos com patrimônio contribuíssem com míseros 10$000 (dez mil réis) anuais, o problema fiscal estaria resolvido. O valor era tão irrisório que ele acreditou no adiantamento dos dois primeiros anos à vista de muitos. Adicionalmente ao imposto de renda universal, o Estado deveria constituir novas exigências fiscais com a criação de um tributo sobre o capitalista – o homem rico e o industrial. Estava no radar do político imperial a recente imposição da cobrança nos Estados Unidos, mas não faltaram menções à França e outras nações. A cobrança dos tributos sobre renda e patrimônio, portanto, colocaria o Brasil no centro dos regimes mais modernos de arrecadação, criando condições para um enfrentamento responsável da crise fiscal instalada no país.
Tais medidas seriam arcadas pela parcela brasileira que tinha renda e patrimônio, majoritariamente formada por brancos, especialmente homens. Pelo censo de 1872, realizado poucos anos depois do debate no Senado, o país ostentava uma população de cerca de 10 milhões de habitantes. Como se sabe, era uma sociedade escravocrata, ou seja, com cerca 15% da sua população excluída da cidadania de direitos. Os brancos eram 38,1% dos brasileiros em uma sociedade bem dividida demograficamente por gênero – 51,6% de homens e 48,4% de mulheres. Natural que pardos e negros também acabassem por sofrer a cobrança do novo tributo, porém, a distribuição desigual das riquezas, e a existência de cerca de 1,5 milhão de pessoas escravizadas – cuja possibilidade de ter renda jurídica era ainda aberta a debates apenas resolvidos com a Lei do Ventre Livre em 1871 -, indicava que o imposto de renda acabaria por ser especialmente suportado pela parcela branca da população, aproximadamente 3,8 milhões e esses estavam bastante próximos da estimativa de contribuintes realizada pelo senador.
A ofensiva da elite imperial veio rápido. Souza Franco, sem enfrentar diretamente a ideia como era a boa prática da política de então, não se opunha à ideia, mas relativizou a capacidade de arrecadar e insinuou que o novo tributo geraria crise política. Dizia que os brasileiros já estavam penosamente pagando as consequências das crises econômicas instaladas. José Maria da Silva Paranhos – o Visconde do Rio Branco – achou que o imposto seria escorchar a população. Ottoni alegou que o valor era alto demais. Outros defenderam que o projeto deveria ser mais bem organizado com a Câmara, de que era preciso tempo para pensar em uma mudança tão radical. Não demorou muito para que se perdesse em falas genéricas sobre a necessidade de uma reforma mais completa do sistema tributário brasileiro. Poucos negavam diretamente os ganhos da ideia e havia certa dificuldade em contestá-la, e os opositores voltaram suas forças às questões mais instrumentais, como dificuldades de arrecadação, conveniência do momento, entre outras, que modernizassem o sistema. Valia de tudo para poder barrar o tributo. Baptista Pereira achava que o imposto até seria interessante, mas que não era recomendável instituí-lo porque não haveria forma de cobrá-lo sem permitir que o Estado se utilizasse de meios agressivos, inquisitoriais – isso no Estado que mais longe levou o trabalho violento e forçado de escravizados africanos e seus descendentes nas Américas.
O texto aprovado não durou muito. Ele foi abolido poucos anos depois, tornando o tema um tabu, sendo derrotados todos os projetos dessa natureza trazidos por ministros da Fazenda dos mais diferentes gabinetes. Com a República, a resistência ao imposto de renda seguiu vencendo alguns dos mais importantes políticos brasileiros: Rui Barbosa, Muniz Freire na Constituinte; a dos deputados Serzedelo Correia e Augusto Montenegro em 1896 – que contaria, inclusive, com o apoio do então ministro da Fazenda, depois presidente, Rodrigues Alves; a do deputado Felisbelo Freire em 1898; a de Anísio de Abreu, em 1904.
Destacou-se o projeto de Rui Barbosa. O advogado, defensor ardoroso da sua instituição, em longo relatório defendeu a sua constituição imediata. Analisou a história, mostrando a excepcionalidade do caso brasileiro em não adotar um modelo mais progressivo de arrecadação fiscal, investigou formas de se implementá-lo conforme o modelo praticado em diversos países. Para ele, reduzir os impostos indiretos e impor a tributação direta sobre a renda e patrimônio seria a forma de criar um modelo de maior moralidade, que fosse mais justo e adequado ao padrão da sociedade brasileira. Defendeu uma proteção legal para que a renda das classes mais pobres não fosse atingida. Foi derrotado e apenas nos anos de 1920, mais de 60 anos depois do começo dos debates no Parlamento brasileiro, tivemos a criação do imposto de renda.
As resistências sistematicamente organizadas contra uma tributação progressista, que onerasse mais a pequena população detentora de renda e patrimônio no Brasil, conseguiram não só frear por décadas a imposição do tributo no país, mas mantiveram-se vivas mesmo após a sua instituição, pois mesmo com a criação desses, o país jamais permitiu que fosse predominante no esquadro das estratégias de cobrança da Fazenda brasileira. Como apontamos em artigo anterior, enquanto a média da OCDE (Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico) tem sua arrecadação composta por dois terços de impostos diretos ante um terço de impostos indiretos, no Brasil, o quadro é o contrário: apenas um terço de impostos diretos contra dois terços indiretos. Junto à instituição de tributos sobre rendas e patrimônios, o Brasil desenvolveu fórmulas regressivas profundamente eficazes em onerar menos os mais ricos, embutir custos tributários em consumo e serviços distribuídos uniformemente entre as camadas que mais depositam suas riquezas em despesas dessa natureza – naturalmente, os mais pobres. Dentro desses grupos, negros e mulheres têm suportado um peso ainda maior.
Ligia Toneto é economista e pesquisadora do IREE (Instituto para a Reforma das Relações entre Estado e Empresa). Membra do Desajuste: economia fora da curva. Mestranda em economia pela Unicamp (Universidade Estadual de Campinas).
Paulo Henrique Rodrigues Pereira é sócio da LacLaw Consultoria Tributária, é doutor em direito pela USP (Universidade de São Paulo) e pesquisador do Afro Latin-American Research Institute (Hutchins Center), na Universidade de Harvard (EUA), onde também foi visiting fellow do Department of History.