A cobrança indevida de ICMS antecipado

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Sistemática se assemelha à substituição tributária, mas com ela não se confunde e tampouco equivale ao Difal

O objetivo deste artigo é tecer considerações sobre a inconstitucionalidade e a ilegalidade da prática comumente intitulada “antecipação de ICMS”, adotada em operações interestaduais. A cobrança consiste na antecipação da ocorrência do fato gerador (circulação jurídica da mercadoria e transferência de titularidade), em uma sistemática que muito se assemelha à substituição tributária, mas que com ela não se confunde e tampouco se equivale ao diferencial de alíquotas, o chamado Difal.

Na prática, em operações entre estabelecimentos de mesmo titular, os contribuintes têm se deparado com cobranças de ICMS pelo estado de destino no momento da entrada da mercadoria destinada à posterior revenda. Em vez de o fato gerador ocorrer no momento da revenda, ele é antecipado para se materializar no instante em que a mercadoria ingressa no território. A dinâmica é adotada pela maioria dos estados do país.[1]

A problemática se desdobra em dois aspectos. O primeiro se relaciona à inexistência de operação mercantil e à consequente impossibilidade de se poder “considerar ocorrido fato imponível do ICMS”[2]. O segundo se refere à modificação do aspecto temporal da incidência do ICMS por meio de norma infralegal.

No caso de mercadorias enviadas entre estabelecimentos do mesmo titular, isto é, em se tratando de circulação física (e não jurídica), não poderia o ente dispor sobre a escolha temporal a partir da qual o imposto será devido, dada a inexistência de obrigação tributária até esse momento.

Não há, portanto, a hipótese de incidência (operação mercantil) que autorizaria a legislação estadual a eleger quando a transmissão da mercadoria ocorre. Essa dimensão somente poderia ser adotada caso se tratasse de transmissão jurídica do bem (ou seja, com a transmissão de titularidade), na qual o estado poderia, por exemplo, definir a entrada da mercadoria no estabelecimento comercial, industrial ou produtor como o momento do nascimento da obrigação tributária.

Reiterando a jurisprudência já consolidada nos Tribunais Superiores, o Supremo Tribunal Federal afirmou recentemente (ADC nº 49/RN) que a circulação de mercadorias (art. 155, II da CF) apta a atrair a tributação pelo ICMS será a jurídica, ainda que se trate de operação interestadual. Assim, nem a lei ordinária do estado tampouco o Regulamento de ICMS poderiam tratar da antecipação do pagamento quando os estabelecimentos são do mesmo titular.

Passando para o segundo viés de nossa análise, é possível identificar que em alguns estados, como o Pará, a base que regula a antecipação do imposto está concentrada em decreto estadual. Aqui é preciso cuidado, pois não basta a simples previsão na lei ordinária para que a antecipação possa ocorrer.

A prática torna-se ilegal e inconstitucional quando há a presença de vícios como (i) a lei estadual que autoriza a antecipação de ICMS assim o faz de forma genérica; e (ii) o decreto estadual que institui a dinâmica avança na delimitação de contornos não previstos pela lei.

Ao julgar o RE nº 598.677/RS, de relatoria do ministro Dias Toffoli (DJe 29/03/2021), sob o Tema nº 456 da Repercussão Geral, o STF chancelou a inconstitucionalidade da antecipação prevista por norma infralegal baseada em delegação genérica contida em lei estadual. O tema foi assim fixado: “a antecipação, sem substituição tributária, do pagamento do ICMS para momento anterior à ocorrência do fato gerador necessita de lei em sentido estrito. A substituição tributária progressiva do ICMS reclama previsão em lei complementar federal”.

A decisão não põe fim à possibilidade de o ente exigir a cobrança antecipada do ICMS, mas lança mão de um norte sobre como os preceitos devem ser obedecidos, sob pena de violação às determinações constitucionais.

No paradigma, estavam em análise a Lei Estadual nº 8.820/89 e o Decreto Estadual nº 40.900/91 do Rio Grande do Sul (RICMS/RS). O relator expôs que a imposição só seria possível se disposta em lei, “já que o momento da ocorrência do fato gerador é um dos aspectos da regra matriz de incidência”, o que não poderia ser feito “por meio de um simples decreto”.

Desse modo, é preciso verificar a forma como a lei estadual instituiu a dinâmica da antecipação. Se o diploma a dispuser de maneira genérica, sem especificar critérios como o modo e o prazo de recolhimento, haverá “diálogo em branco” com o Regulamento, caso este último avance para tratar de aspectos que façam nascer uma nova obrigação tributária, uma vez que o momento do fato gerador é o aspecto que a faz nascer (art. 113, §1º do CTN). Como integrante da formação da regra matriz de incidência, a reserva legal (art. 150, §7º da CF/88) é requisito indispensável.[3]

Por outro lado, nada obstante o STF tenha deixado claro tratar-se de antecipação do fato gerador e que seria possível lei ordinária cuidar  da dinâmica, a Suprema Corte assim o fez sem a análise da alínea “a” do inciso III do art. 146 da CF, que determina à lei complementar estabelecer normas gerais sobre, dentre outros, as definições do fato gerador e dos contribuintes. Tal dispositivo não foi objeto do recurso extraordinário da parte e a jurisprudência do STJ igualmente fora fundada sem tal ponderação.

Nesse sentido, se é inequívoco que a antecipação apresenta relação com o fato gerador, na linha do que entendem os Tribunais Superiores, é da mesma forma indissociável, pela determinação do art. 146, III, “b” da CF/88, que somente a lei complementar poderia veicular previsão dessa envergadura.

Tal conclusão é ainda corroborada pela legislação. Pelo art. 114 do Código Tributário Nacional, “fato gerador da obrigação principal é a situação definida em lei como necessária e suficiente à sua ocorrência.” Já a LC nº 87/96 (Lei Kandir) define, no artigo 12, inciso I, o momento em que o fato gerador se materializa: “na saída de mercadoria do estabelecimento do contribuinte”.

Um cuidado adicional é necessário. Em algumas situações, a Autoridade Fiscal impõe a antecipação do ICMS em conjunto com a substituição tributária. Essa ocorrência é grave, pois atrai dupla tributação e a violação ao princípio da legalidade, uma vez que o regime deve ser precedido por lei complementar (art. 155, §2º, XII, b da CF).

Vimos, portanto, que o STF foi responsável por impor limites importantes à atuação dos Poderes Executivo e Legislativo em âmbito estadual no que tange à antecipação do ICMS. Todavia, o campo ainda está aberto para as ramificações do debate, que deverão ser acompanhadas e analisadas com cautela pela cadeia produtiva submetida à cobrança do imposto.

Fonte: JOTA

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